Um animal de outro tipo

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Uma nova espécie, o chimpanzé elefante.

Meu corpo me responde, como uma máquina. Eu não tenho muita energia, mas tenho um corpo saudável e responsive. Se eu voltasse a malhar em pouco tempo estaria em forma. Tanto quanto pode estar alguém que pesa ao redor de 100 Kg, bebe e fuma (ainda que moderadamente) por mais de 20 anos. Mas é aquela coisa: tem gente que não bebe e está morrendo. E porque meu corpo me responde e tenho saúde eu sinto vergonha de me queixar dos meus problemas e dificuldades mentais, das dificuldades que enfrenta meu espírito. São tantas as pessoas que, além de ter as dificuldades do espírito, tem também dificuldades com o corpo. Sem falar do reflexo de um no outro (eu não creio em determinação unívoca de nenhum tipo), do corpo na alma, da alma no corpo. A gente nunca valoriza apropriadamente (com justiça) o que tem com constância. E eu sinto isso, que não valorizo tanto meu corpo e minha saúde porque os tenho constantemente, como variáveis com as que não preciso me preocupar. Não se valoriza o que não se nota, o que funciona bem não notamos a menos que a gente dirija a nossa atenção a isso deliberadamente. A saúde quando falta nós logo sentimos, sentimos sua ausência. Isso é ainda mais fácil de notar numa pandemia.


Clique em CC, dentro do vídeo, para ativar as legendas. Wim Wenders representa (ou apresenta?) anjos que desejam ter um corpo e serem finitos, mortais. Eu não tenho a relação com o meu corpo que teria um anjo, pois os anjos invejam nosso corpo como quem quer o que não pode ter. Um anjo quer sentir o cheiro do café, o gosto do cigarro. Um anjo sabe dar valor a um bom cigarro. Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987)

Assim, eu escrevo pra me lembrar do meu corpo. Pra reconhecer minha própria força e vitalidade apesar do esmagamento a que meu espírito está constantemente submetido. Durante um bom tempo eu frequentei (sempre preguiçosamente) a academia, conheço o fascínio do corpo e da força física. Não sou dessas pessoas com histórico de atleta, mas conheço o que há de aditivo e viciante em correr. O corpo é um poder, todos sabem. Infelizmente, minhas convicções biriteiras limitavam a expansão do meu interesse esportivo até que finalmente a conveniência do dia a dia, aliada à preguiça, escantearam meu interesse pelas atividades físicas numa gaveta, em algum lugar desconhecido. Às vezes flerto com a ideia de voltar à natação, mas a verdade é que como animal, ainda que forte e saudável, eu sou uma mosca (ou uma formiga) perto de qualquer chimpanzé.

A alopecia de um chimpanzé revela seus músculos e sua força.

Na sociedade, a prevalência da mente foi setorizando o lugar do corpo, limitando-o ao esporte. O corpo não tem nenhum lugar central nessa sociedade — senão como suporte, como ghost ou shell, a depender de como se olhe, que em breve vamos substituir por algo mais apropriado à nossa aspiração à imortalidade —, porque nela tudo gira em torno do nosso espírito, ou como gostam de chamar os que rejeitam o animismo, da inteligência. Claro que as expressões não são sinônimas, elas têm apenas uma relação de família, mas essa familiaridade serve ao meu propósito. Naturalmente, a prevalência da mente tem impacto sobre o corpo. É o que eu gosto na Tradeoff Hypothesis, uma hipótese que eu já mencionei aqui uma vez. É como se nós tivéssemos trocado a extraordinária memória de curto prazo dos chimpanzés pela expansão da habilidade para usar nossa memória de longo prazo. Isso é o que nos permite criar, compor a partir das memórias. Criar ficções, sentido, fantasias, teorias, hipóteses… beleza!

Não nós somos apenas animais que figuram fatos, em certo sentido os chimpanzés figuram fatos melhor que nós. Nosso forte é criar, é usar o oceânico manancial de nossas memórias para criar sentido do nada. O reservatório da memória nunca é nada — é muita coisa, pra ser preciso —, mas as possibilidades da criação não são as mesmas da representação. Embora o mundo da ciência, o nosso mundo, e os próprios cientistas ainda vivam no sonho do conhecimento como espelho da natureza, as possibilidades da criação são muito mais amplas e audaciosas, porque são a possibilidade da beleza. Somos animais artísticos, a beleza não é um fato, mas fascina como a luz do sol deve ter fascinado Ícaro. Fascina não com universalidade que gostaríamos de emprestar ao nosso conhecimento, mas com uma força desconhecida que parece afetar a quase tudo que é capaz de sentir.

Não é o quantitativo o que nos dá o que temos de mais sublime, e creio que essa ênfase sobre o papel da arte marca certa perspectiva importante do pensamento de Wittgenstein, é uma das suas lições esquecidas — como sublinha seu biógrafo, Ray Monk.

Nos nossos dias as pessoas pensam que os cientistas existem para instruí-las, poetas, músicos, etc., para entretê-las. A ideia de que estes tenham alguma coisa que lhes ensinar, isso não lhes passa pela cabeça.

Wittgenstein, cultura e valor

E é nesse sentido que vai também as ideias de Richard Rorty (creio muito pretensiosamente) sobre a cultura literária, em seu precioso artigo: O declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura literária, um artigo que eu vou passar a vida tentando terminar de traduzir:

A questão “você acredita que a verdade existe?” é uma abreviação para algo como “você acredita que há um fim natural da investigação científica (inquiry), um modo como as coisas realmente são, e que entender o modo como as coisas são vai nos dizer o que fazer de nós mesmos?”.

Aqueles que, como eu, são acusados de frivolidade posmodernista não pensam que há um tal fim. Nós acreditamos que a investigação é apenas outro nome para a resolução de problemas e não podemos imaginar chegando a um fim a investigação sobre como seres humanos devem viver, sobre o que nós devemos fazer com nós mesmo. Pois soluções para velhos problemas produzirão novos problemas e assim eternamente. Assim como para o indivíduo, também para a espécie e a sociedade: cada estágio de maturação superará antigos dilemas para em seguida criar novos.

richard Rorty, The Decline Of Redemptive Truth And The Rise Of A Literary Culture

É isso que nós somos, animais artísticos, capazes de cantar e contar histórias, inventar mundos, por isso a arte também deve nos ensinar. Precisamos dela mais do que nunca para imaginar coisas muito diferentes. Bem, esse só pode ser o começo de uma longa conversa, porque disso tudo sai muita coisa, mas essa conversa fica pra outro dia.


Depois de escrever o texto, por coincidência topei com essa entrevista do Yamandu Costa. Nunca tinha ouvido o Yamandu falando sério! Nas entrevistas que eu vi ele sempre estava brincando, mesmo que falasse sério, com a música e os amigos. Essa entrevista aqui tá bem diferente, uma lindeza! Ele falando da morte, de arte, de amizade, tá de quebrar o vidro dos olhos.

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