Somos muito pouco

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A sábia visão do futuro de PoolyDrawnLines

Não me leve a mal, eu não sou dos que gostam de identidades. Nem identidade nacional, nem identidade de espécie, nada. O que não significa que não tenha as minhas, sou corinthiano, por exemplo. Corinthiano, mas nunca deixei de torcer por outro time porque não devia. Como não torcer pelo São Paulo de Telê Santana no Mundial em 92 e 93? Em alguma medida isso reflete minha relação com as identidades. Mas o que eu queria dizer era que apesar de não gostar muito de identidade, eu penso com frequência na identidade humana. Não como humanista, mas como alguém que se pergunta: isso que nós somos como coletivo é algo apreciável? Tem valor?

Não importa que as pessoas se sintam apenas indivíduos, ou que no máximo formem um agregado de indivíduos atomizados e amarrados frouxamente entre si por identidades que os igualam a poucos, enquanto sobre os outros, os diferentes, a maioria, recai sua agressividade — como lembrava Freud. Essas pessoas que nós encontramos apenas acidentalmente no mercado, na feira, na rua, nas vias de transporte, são para boa parte dos outros animais criaturas a serem evitadas. Se os animais tivessem nossa capacidade para o preconceito, não escutaríamos nem mesmo o arrulhar das pombas. O mero vislumbre da silhueta de um humano inspiraria o nojo e a repulsa em todos os outros animais. Mas como não têm nossa enorme capacidade para o mal, os animais ainda se aproximam de nós, como se não fossemos, para eles, o mal a ser evitado. Se considerarmos essa insólita ficção que eu inventei, em que os animais nos identificam como humanos a partir de tudo que nós fizemos com eles, nós poderíamos condenar esses animais, esses reminiscentes de outras milhares de espécies que extinguimos, por ter nojo de nós? Quero dizer, ainda que a gente se sinta tão individual? É isso o que eu me pergunto quanto à identidade humana.

E por que nós haveríamos de cuidar dessa identidade, se somos apenas indivíduos? Se somos, quando muito, um nacional, um cidadão que pertence a um país, ou a algum continente (ou parte de continente) a que atribuímos importância em nosso próprio proveito. Os outros humanos são nossos únicos adversários, os únicos cuja opinião importa. Não temos Deus, não respeitamos os animais a ponto de nos afetar o que eles poderiam pensar de nós (eles não pensam!), e não nos importa o que eles possam sentir. O que então nos faria valorizar o humano e zelar por essa identidade? Um competidor externo, certamente. Assim, sonhamos com extraterrestres. Sonhamos com androides (e os androides sonham com ovelhas elétricas?). Em nossos sonhos nós projetamos a superioridade que não podemos enxergar em nós mesmos e que precisa ser projetada porque nós não podemos assumi-la. A quem mais seríamos superiores, aos animais? — Grande merda! Eles são estúpidos! Os sádicos podem até sentir prazer torturando a quem a eles julgam inferior, mas não superioridade. A superioridade é o triunfo sobre um inimigo que se respeita e estima, não é o caso. Não, nós só respeitamos as inteligências com que sonhamos. Diante delas, o cinema e a literatura nos contam, podemos às vezes até vislumbrar o melhor de nós, como se todas as criaturas inteligentes do universo fossem um derivado, feitas a partir da nossa costela. No entanto, isso significa que aquilo que nos é superior já não pode ser humano — deve necessariamente ser outra coisa.

Nem todos os filmes de Ridley Scott são bons, ou pelo menos tão bons como Blade Runner, mas é difícil dizer que alguém refletiu e imaginou melhor que ele as inteligências artificiais, os androides — mesmo contando com Philip Dick, Isaac Azimov e Ewan McGregor, recentemente. Mesmo Alien Covenant, que é um filme bem meia boca, tem insights incríveis.

Por medo de ser rebanho, aceitamos ser meros indivíduos, não com resignação, mas como se nos fosse dada a maior das virtudes. A singularidade do indivíduo — é verdade — é a fonte de todas as virtudes (ainda que elas tenham começado nos povos). E o que nos tornamos? Rebanho! Ou não somos? Quem ainda é otimista diante dos rebanhos é porque ainda crê nos sonhos que sonha, mesmo que o sonhador seja cientista. Aliás, principalmente se for. Os cientistas já não tem a mesma imaginação para sonhar novos sonhos.

A cooperação foi o que nos trouxe até aqui, ainda que alguns digam que foi a competição¹, mas isso que nos tornamos ainda me parece muito pouco. Observemos os estorninhos no céu, como é incrível o que eles fazem juntos. — Eles são apenas animais, tudo que eles fazem é simples comparado à complexidade do nosso pensamento, não temos nada que aprender deles.

Há muitos vídeos da dança dos estorninhos, mas eu gosto especialmente desse vídeo porque dá pra ouvir (apesar da música) a reação e o som das asas dos pássaros.

Nós também já fizemos coisas incríveis juntos, ao nosso modo, claro. Eu sou apaixonado pelo Linux, pra ficar num exemplo de um projeto cooperativo do nosso tempo. Mas tudo que fizemos até aqui ainda é muito pouco, dada nossa inteligência. Às vezes eu penso se poderíamos agir como uma rede de computadores, como uma botnet. A mente não é um software, é verdade, embora essa analogia seja muitas vezes útil. Ainda assim poderíamos nos coordenar de modo análogo. A botnet não é a melhor das imagens, porque é um sistema centralizado e determinado pela lógica master/slaves. As máquinas são nada mais que zombies dirigidos para realizar uma mesma operação computacional². Precisaríamos formar um sistema descentralizado e a única tecnologia que me vem a cabeça é o blockchain. Mas como é possível coordenar ações sem um sistema centralizado de execução, sem um master? — alguém me perguntaria. Bem, eu só estou relatando uma sandice que às vezes me passa pela cabeça, não sugerindo uma panaceia. A coordenação dos pensamentos, no entanto, talvez seja o que basta para que saibamos (juntos) o que fazer (tenhamos o poder executivo de um master).

O certo é que ainda somos muito pouco porque como indivíduos somos egoístas e como membros da sociedade, gregários. E acreditamos que devemos escolher entre ser indivíduos ou ser parte do rebanho. A individualidade impede a coordenação social e a sociabilidade ameaça estrangular a singularidade do indivíduo. Sem dúvida, os nossos conceitos nos enfeitiçam.

Talvez um dia alguma nave espacial desça na Terra e nos mostre uma superioridade que não poderemos reconhecer como tal, uma superioridade diferente daquela que aparece em nossos sonhos (ou pesadelos).


¹ Isso mostra que não convém deixar que uma verdade determine qual é a realidade onde um valor deveria ser o elemento determinador. Nada impede que prevaleça um valor inferior, por assim dizer, indesejável, injusto, cruel até. Sim, nada impede. Mas pelo menos estamos sem máscaras e subterfúgios, sabemos o que escolhemos. A verdade exclui e logo se desinteressa pelo que foi excluído como falso (ela finge que não existe história e que tudo é progresso linear, não há circularidades). Se depois de tanto tempo no mercado nós ainda acreditamos que os valores da sociedade de mercado devem ser os elementos axiais da sociedade, assim deve ser, mas não por convicção democrática ou coisa parecida. Cada vida, como cada espécie, tem seu tempo e seu potencial, se os humanos aceitarem que isso é o melhor que podemos ser, nada pode mudar isso. Aliás, estava me referindo Hayek quando falei de competição, aos liberais e ultraliberais.

² Os dois únicos usos que conheço em que uma rede coordena computadores para trabalhar juntos (além das aplicações de Big Data e do paralelismo computacional) em algum objetivo comum são o ataque de Negação de Serviço (Denial of Service Attack, DoS) e as tentativas de minerar bitcoins. Entretanto, nenhum dos dois usos tem uma conotação positiva, de tal sorte que valem mais como uma analogia das potencialidades.


Em Filosofia da Consciência algumas ideias têm sido resgatadas para falar Panpsiquismo, isso me parece muito estimulante.


Atualização: por coincidência, encontrei poucos dias depois essa matéria sobre o novo livro de Miguel Nicolelis. Ele usa o termo Brainet:

Tudo indica que a “Brainet” não é mera metáfora. O trabalho do brasileiro na Universidade Duke (EUA), bem como o de outros neurocientistas, está mostrando que a atividade cerebral de indivíduos diferentes engajados na mesma tarefa de fato acaba ficando sincronizada, podendo até ser usada para controlar avatares virtuais ou aparatos robóticos de forma conjunta.

Tenho enormes diferenças com Nicolelis, mas esse pensamento é muito estimulante e tem tanta gente pensando isso em áreas tão diferentes hoje em dia que é curioso constatar essa coincidência.

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