Eu nunca fui um ateu caricato, cuidei pra não ser. Desses que citam Bertrand Russell em sua fase mais panfletária. Mesmo em sua fase mais panfletária, permitam que eu me corrija, as coisas que Russell escrevia ou dizia tinham a marca de sua notória inteligência e generosidade. Bem, o que eu quero dizer é que meu ateísmo tem grande componente de reflexividade, não é um mero ativismo intelectual. Eu nunca o escondi, o ateísmo hoje em dia está numa posição muito confortável comparado com o passado, mas nunca fui ativista. Acho simplória a ideia de que as religiões são o mal do mundo, como vejo circular por aí, embora no Brasil de hoje seja muito difícil não se ressentir do lucrativo e poderoso mercado que se criou em torno da figura de Cristo.
Há sociedades que nós classificaríamos como religiosas que nem sequer possuem o conceito de religião, porque não fazem separações conceituais que nós fazemos e nas quais acreditamos cegamente. A coisa é muito mais complicada e não se resolve com um mero apontar o dedo contra as religiões e denunciá-las como formas de servidão mental e manipulação. As pessoas são mais complicadas que nossos mais elaborados esquemas.
E o caso é que o ateísmo pode ser também uma forma de ativismo, tem gente que se crê soldado do ateísmo — o soldado do bem, só que sem o bem. Um soldado, com ou sem o bem, é um soldado, não é alguém dado à reflexão, mas à ação e à obediência. A reflexão exige tempo, ponderação e o bom exercício do juízo (autonomia). É certo que temos nos acelerado absurdamente, mas nunca até o ponto de que coincidam a urgência de nossa necessidade de ação (intervenção) e o tempo necessário ao exercício do juízo. Se até os processadores tem limites físicos de aceleração no seu processo de desenvolvimento (aumento da frequência), não somos nós quem vamos ganhar essa corrida — nós, seres primitivos e puramente biológicos.
Ainda que eu valorize a reflexão e a reflexividade ao ponto de aceitar seu lado, digamos, sombrio — a instabilidade, o relativismo, a dissonância — isso não significa que estou livre dos hábitos, especialmente dos hábitos de pensamento. Quando me interesso por fenômenos fora do espaço da ciência, eu os observo com um olhar analítico do qual não sei me despir. Tudo começa já ao categorizá-los como fenômenos, com a separação e a rotulação. Por exemplo, a meditação como fenômeno. Duvido que em alguma cultura oriental, que a incorpore como parte fundamental das suas práticas, trate a meditação em termos estritamente materialistas. E pra mim é difícil me esquivar dessa tendência. A verdade é que faz muito sentido, digo, a redutibilidade materialista é fascinante. No vídeo abaixo, essa tendência se revela numa perspectiva orientada ao Business. Há um enorme mercado de produtividade, um mercado onde circula muito dinheiro porque os clientes desse mercado são os CEOs de empresas importantes da nossa amada economia globalizada.
A meditação me atraí, mas como método milenar de controle da variabilidade da frequência cardíaca. E faz muito sentido. Dada nossa constituição biológica, os níveis fisiológicos mais fundamentais determinam os processos corporais e mentais mais complexos. Aí de repente me vejo enrolado na consideração histórica do debate sobre a ascendência do corpo sobre o mental, ou da posição contrária, a força determinante do espiritual (ou mental, a res cogitans) sobre o material; ou ainda à crítica ao dualismo nas neurociências. E mais uma vez imensamente distante de qualquer coisa que não seja intelectual.
É difícil para um ateu livrar-se das lentes do ateísmo, pois, em geral, o ateu crê que não usa lentes. Todos os outros usam, não os ateus. Os ateus veem o mundo objetivamente, como ele é. Eles adotam uma atitude imparcial e desde essa perspectiva veem o mundo objetivamente, sem valores — como naquele livro de fatos de que Wittgenstein fala na Conferência sobre ética, um livro que conteria a descrição total do mundo e onde não estaria nenhum juízo de valor. No Tractatus Logico-Philosophicus há um comentário que explica muito da atitude cientificista e ateísta.
A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.
Wittgenstein,Tractatus Logico-Philosophicus 5.61
Não há um lado de fora, a lógica preenche o mundo. Quem crê que existe um lado de fora do campo da determinação (lógica ou natural) está apenas se iludindo e inventando uma desculpa pra não lidar com sua imensa ignorância sobre o mundo (e com o sentimento que essa ignorância traz). As pessoas que acreditam na ciência se esforçam para compreender o mundo, para explicá-lo, por mais que saibam que talvez nunca possamos esvaziar o imenso reservatório da nossa ignorância (é preciso reservar um espaço lógico para a indeterminação), eles se empenham diariamente em conhecer mais. Supor um lado de fora é uma posição comodista, preguiçosa e anticientífica.
Nem todo mundo postula um lado de fora do espaço lógico como resposta preguiçosa a um problema teórico. O lado de fora se coloca mesmo dentro da própria lógica, com o problema da cegueira normativa, por exemplo. E essa discussão poderia tomar o rumo da discussão de Wittgenstein sobre a antropologia, as Observações sobre o Ramo de Ouro e suas respostas a Frazer. Mas eu prefiro usar Nietzsche, pra não perder o costume.
A necessidade do ilógico. — Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário aos homens e que do ilógico nasce muita coisa boa. Ele se acha tão firmemente alojado nas paixões, na linguagem, na arte, na religião, em tudo o que empresta valor à vida, que não podemos extraí-lo sem danificar irremediavelmente essas belas coisas. Apenas os homens muito ingênuos podem acreditar que a natureza humana pode ser transformada numa natureza puramente lógica; mas, se houvesse graus de aproximação a essa meta, o que não se haveria de perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.
Nietzsche, humano, demasiado humano, 31
A relação fundamental com todas as coisas é algo que sinto que devo resgatar (resgatar?!) depois de estar por tanto tempo usando as lentes do ateísmo. Como um desafio, não intelectual, mas espiritual. Enxergar o que não fomos treinados a ver é um imenso desafio, porque exige uma nova espécie de atenção, uma atenção que está constantemente sob ameaça de ser de novo tragada para as engrenagens analíticas do racionalismo, da minha tendência lógica e intelectual. É difícil aceitar a indeterminação porque aceitá-la exige mais que virtudes intelectuais, requer a coragem de quem ama o destino e é capaz de dizer sim a todas as coisas, não fugir do necessário — abandonar a ilusão do controle (que é o motor da ciência) e cruzar as fronteiras do ateísmo em direção a algo não inteiramente conhecido.