Meus interesses são tão voláteis quanto meu humor. Em 2015, quando eu estava lendo Sobre a certeza, de Wittgenstein, andei fascinado pela ideia de sistemas de referências, os sistemas pragmático-normativos que enformam nossa visão de mundo. E então escrevi um artigo, num espanhol ainda mais precário do que tenho hoje, chamado ¿Hemos ido a la Luna? O artigo não era a defesa de teses conspiratórias, mas explorava uma consequência simples (mas bombástica) das ideias de Wittgenstein. O que acontece quando os pilares e eixos de nossas visões de mundo são confrontados e questionados?
A perspectiva de Wittgenstein é clara: as bases de nossa visão de mundo não cumprem essa função porque são verdadeiras, mas sim porque fomos (treinados && adestrados) numa visão de mundo onde elas tem a função de fundamento. Sua pragmática caminha lado a lado com o behaviorismo (e, por consequência, com a primatologia), e por isso uma ênfase significativa é concedida ao papel do treinamento, à função das autoridades que nos ensinam e ao longo período de formação necessário para aquisição das habilidades linguísticas. Esse deslocamento da verdade do seu lugar fundamental, isto é, o fato de que a verdade não é mais a base e a fundação da nossa visão de mundo, tem efeito ainda muito pouco digerido pelo pensamento contemporâneo — ou melhor dizendo, ainda muito pouco aceito. No Sobre a certeza encontramos afirmações como essa:
O ato de dar razões, entrentanto, chega a um fim — mas o fim não está constituído de certas proposições que se nos apresentam como imediatamente verdadeiras, quer dizer, não é um modo de ver [visão] de nossa parte; é um agir que se encontra na base dos nossos jogos de linguagem.
Wittgenstein, sobre a certeza, § 204
Wittgenstein substitui o ver como verdadeiro pelo agir como se algo fosse verdadeiro (este algo não é proposicional, nem determinado). Portanto, não se trata mais de ter evidências ou de considerar esse ou aquele fato verdadeiro, se trata de adquirir (cega e passivamente) um modo de agir que reflete uma visão de mundo onde certas coisas são tomadas como verdadeiras. (Nós nos emancipamos dessa heteronomia logicamente necessária? Nos tornamos seres autônomos?) É como se primeiro nos fosse ensinado um dogma e só depois, muito depois, adquirissemos a capacidade de questionar (por em dúvida) o que nós aprendemos. Daí o famoso mote do livro: a dúvida pressupõe a certeza. É uma exigência lógica. Só é possível participar da comunidade linguística onde certas dúvidas podem ser enunciadas quando antes comungamos um monte de certezas. Essas certezas amparam a visão de mundo que herdamos quando aprendemos a linguagem.
A consequência que eu queria sublinhar com o artigo era a seguinte: se a verdade não está mais nesse lugar fundamental, então a manutenção de certas ideias e fatos que nos parecem inevitavelmente verdadeiras depende de fatores mais subjetivos do que gostaríamos de admitir. Numa palavra, vontade. Esses fatos tem um papel estrutural tão importante em nossa visão de mundo que não podemos descartá-los sem jogar fora com eles toda a visão de mundo, tendemos, portanto, a preservá-los e a confirmar nossa visão de mundo não importa o que aconteça.
Não é essa a questão: “E se você tivesse que mudar de opinião mesmo sobre aquelas coisas mais fundamentais?” E a resposta a essa questão parece ser: “Você não tem que mudar. Isso é exatamente o que ser ‘fundamental’ significa”
Wittenstein, sobre a certeza, § 512
Como fica a nossa concepção de racionalidade diante disso? O papel importante que atribuímos à coerção e constrangimento lógicos? É claro que selecionei a dúvida sobre a ida à Lua justamente porque ela é polêmica e excêntrica o bastante para fazer ver meu ponto. O próprio Wittgenstein costumava fabricar ficções para tornar claras suas ideias e o fato dele próprio ter mencionado algumas vezes a viagem à Lua como exemplo de algo impossível me inspirou (ele pensou tudo isso por volta dos anos 50).
Em nome da determinação, a lógica sempre buscou eliminar a vontade (a arbitrariedade) de seus extratos fundamentais, para impedir que imperasse na linguagem uma pluralidade de fatores insubmissos à sede de controle que secretamente subjaz aos projetos racionalistas que a guiam. Mas a vontade — expressão de uma psicologia nunca satisfatoriamente conjurada pela lógica e da lógica — teimava em voltar, cada vez mais forte. E é verdadeiramente difícil sustentar um projeto racionalista tal e como o compreendemos ainda hoje tendo em vista a importância da vontade, isto é, a tendência a conservar (arbitrariamente) a estabilidade de nossas perspectivas. Isso se deixa ver não apenas em filosofias da ciência tão distintas quantas as de Karl Popper e Thomas Kuhn, quanto no dia a dia das nossas post-truth societies.
Essa ênfase sobre o papel da vontade alimentou minha posterior fascinação pela ideia de estabilidade, como produto híbrido lógico e psicológico (minha ideia de lógica é psicologista), e a consequente tendência à estabilidade que ela alimenta. Disso também se deriva minhas críticas às instituições, a opinião de que a reflexão tem um papel disruptivo para instituições e quadros normativos, mas essa já é uma outra história. Com essa postagem espero pelo menos ter conseguido tornar um pouco mais palatável meu artigo e tirá-lo da bruma conspiratória que o título inevitavelmente inspirava, pois esse tema me parece imensamente fascinante.
PS. Eu gosto de citar duas expressões da influência de Wittgenstein, especialmente em relação a essa desidratação da verdade. A primeira (controversa) é o texto de Richard Rorty chamado The Decline of Redemptive Truth and the Rise of a Literary Culture, o segundo é o artigo de Danièle Moyal-Sharrock chamado Animal in Epistemology. Os textos não são exatamente acessíveis a um público mais amplo, mas tem perspectivas interessantíssimas para quem se interessar por esses temas.
PPS. Apesar de minha empolgação ao escrever, o artigo não foi aceito pela revista à qual o enviei. E perdi a esperança de que fosse aceito por qualquer outra revista.