O sem sentido do sofrimento é uma das coisas mais difíceis de se aceitar na vida. Por isso é quase inevitável buscar algo que dê sentido à infelicidade e às dificuldades que experimentamos, algo que pareça justificá-las (esse era o lugar da religião pra Nietzsche). Embora essa busca seja quase inevitável, ela soa como trapaça, subterfúgio, artifício e engodo fabricados para que evitemos enfrentar a face mais crua da existência. Mas a verdade é que toda a cultura é um artifício, de modo que parece descabida a censura à fabricação de qualquer artifício em especial. Não temos obrigação de enfrentar a vida de mãos vazias, sem nossos recursos, simbólicos ou de outra sorte (que não deixarão de ser, também, simbólicos).
De qualquer modo, alguns autores parecem oferecer se não uma compensação para o sofrimento, ao menos uma perspectiva na qual as flutuações da vida ganham outro sentido. Nos sentimos tão inevitavelmente compelidos a buscar o prazer e evitar o sofrimento que esquecemos como o próprio sofrimento afeta (a possibilidade de) as experiências de prazer e felicidade. Eu chamo de amplitude do espectro esse efeito recíproco de aspectos opostos. Quanto mais amplo o espectro, mais potencialmente forte é a possibilidade da experiência contrária. Embora eu tenha notado essa ideia pela primeira vez em Nietzsche, encontrei em Jose Luis Sampedro uma expressão que a mi me gusta muchísimo:
Se em algum sentido a vida é absolutamente justa é no fato de que cada homem e mulher só é capaz de gozar até o limite em que é capaz de sofrer… O resultado é uma justiça estranha e incompreensível, porque a vida nunca deixa de produzir sofrimento e, por outro lado, nem sempre oferece gozos. Mas é absolutamente justo que seja assim. Embora não faça mais que sofrer, sem uma só alegria, no mero fato de ter amplitude (talla) o bastante para sofrer assim já está dada a compensação e feita a justiça.
Jose Luis Sampedro, Congresso en Estocolmo
fala do personagem Miguel Espejo
É verdadeiramente difícil aceitar essa estranha forma de justiça, mas faz todo o sentido. Em certa medida Nietzsche já havia apontado para esse efeito quando falou do custo das sublimes pretensões humanas:
Por que você se assusta? O que acontece para a árvore, acontece também para o homem. Quanto mais deseja elevar-se para as alturas e para a luz, mais vigorosamente enterra suas raízes para baixo, para o horrendo e profundo: para o mal.
Nietzsche, Assim falou Zaratustra
Como tirar proveito dessa amplitude? É difícil responder, mas essa questão deveria estar presente em nossas mentes sempre que consideramos e experimentamos as muitas agruras do sofrimento. Só assim, me parece, podemos vislumbrar o enorme potencial da nossa felicidade.
— Mas isso é muito óbvio, embora pareça surpreendente (eu mesmo me surpreendi ao me dar conta disso). Tudo que há de mais vigoroso e vital na cultura brasileira se alimenta dessa sabedoria, entranhada em muitas das nossas expressões artísticas, especialmente na música, claro.