De onde vem a tendência crescente a negar o caráter científico da Astrologia? O Círculo de Viena tinha sólidas razões para querer eliminar do mapa tudo que não pudesse sustentar as credenciais científicas. Quando o Wittgenstein do Tractatus Logico Philosophicus apareceu com seu modelo figurativo da linguagem não surpreende que ele tenha sido saudado como o tão esperado Messias. (Um meme pode ser incrivelmente didático pra explicar algo complexo.) Ante um modelo figurativo da linguagem o anseio de falar (produzir discurso) sobre Ética, Estética, Religião ou Metafísica deveria ser entendido como disposição compreensível, embora o discurso resultante dessa disposição não chegasse nem mesmo a ser falso, era simplesmente carente de sentido. Para uma linguagem figurativa o mundo é um conjunto de fatos e todo enunciado que não pode ser reduzido a fatos não cumpre exigências elementares e necessárias para que seja significativo, embora possamos compreender o pendor a falar do que está fora do radar factual (Kant, antes de Wittgenstein, já havia tratado disso). Nada mais indicativo desse projeto do que o título do livro de Rudolf Carnap, A construção lógica do mundo. Esse projeto radical, no entanto, já foi pro brejo há muitos anos*.
No entanto, a tendência atual a recusar o caráter científico da Astrologia parece na realidade impulsionada pela polarização política que tem varrido o mundo. As pessoas se sentem instadas a se posicionar ou a favor da ciência e do progresso ou a favor dos terraplanistas e do obscurantismo de todos aqueles que, de um modo ou de outro, acabam associados a este segundo grupo. A mera omissão ou a recusa em apresentar imediata e prontamente o apoio à ciência pode ser suficiente para lançar alguém na zona cinzenta que envolve esse segundo grupo. (Imagine então criticar a ciência e os cientistas.) Por isso as pessoas se apressam em criticar o que aparentemente deve ser criticado e em manifestar seu apoio incondicional (dogmático?) à ciência. — Afinal de contas, não é hora para críticas, nesse momento devemos agir como os militares, como uma ordem unida.
Não acho que a Astrologia precise da chancela da ciência, tal como não acho que a religião precise fundamentar suas perspectivas com argumentos racionais — embora seja inteiramente compreensível a tendência a emular a ciência. Há valor e importância fora da ciência, embora pareça difícil enxergá-los. A ciência tornou-se um empreendimento tão imensamente colossal, tão absurdamente inalcançável para nós, pobres mortais, que sentimos que devemos, mesmo sem compreendê-la minimamente, manifestar nosso apoio, pela intuição de que isso é o correto a ser feito. E é claro que essa intuição se reforça pela representação binária e redutora de tudo que não é científico, como se a luta entre bem e o mal fosse reencenada agora num novo palco.
O neurologista Sidarta Ribeiro tem uma perspectiva interessante sobre o sonho, ele lembra que o sonho sempre foi um fator importante na hora de decidir o que fazer. Não se trata de voltar ao tempo em que tínhamos mais fatores que considerar, se trata apenas de avaliar reflexivamente o papel da conhecimento como único fator de determinação do que devemos fazer — e nossa consequente atitude em relação a todos os outros possíveis fatores. Se você perguntar ao entusiasta apoiador da ciência como o conhecimento ajuda na constituição dos quadros normativos da sociedade pode estar seguro de que invariavelmente será soterrado por uma avalanche de lugares comuns. E isso não se limita aos leigos. Mesmo entre cientistas e estudiosos da ciência está longe de ser mais que um lugar comum o entendimento sobre o lugar da (ciência|conhecimento) na sociedade. Para quem não se sente confortável repetindo (papagaiando!) irrefletidamente argumentos alheios convém hesitar e tomar distância da tendência reativa a condenar imediatamente o que não é científico. É difícil acreditar que algo útil, interessante ou desejável resulte dessa tendência.
E para quem quiser se aprofundar nessa discussão vale a pena ler essa série de posts sobre o filósofo da ciência Paul Feyerabend e a Astrologia. Feyerabend foi apresentado numa entrevista à Scientific American assim: “Paul Feyerabend foi realmente o pior inimigo da ciência?” Essa ideia é uma tremenda injustiça, mas a quem ainda importa ser justo?
* Eu já ouvi um professor de Física dizer, se não me falha minha traiçoeira memória, que o neopositivismo já nasceu morto por ignorar (quase deliberadamente) os impactos filosóficos da indeterminação quântica.