Como apresentar de outra maneira a velha contenda filosófica entre determinismo e liberdade? Somos determinados pela cadeia natural de causas e consequências da qual, como seres naturais, inevitavelmente fazemos parte? Nos esgotamos inteiramente nessa cadeia, isto é, tudo que nós somos se reduz a ela*? Ou há algo mais e somos seres que podem determinar o rumo de suas ações livremente, a despeito do condicionamento causal? Bem, pra ilustrar tudo isso numa perspectiva concreta temos que notar uma certa atitude diante daquilo que não podemos controlar. Vejamos então esse trecho de um comercial da Volvo (a partir de 2m33s):
Um mundo determinístico é um mundo onde, entre outras coisas, nós poderemos anular certas possibilidades em virtude do nosso conhecimento tecnológico. O comercial deixa isso muito claro. Um instante de distração na vida de duas pessoas e uma tragédia se anuncia. O apelo do mundo determinístico é forte: ele é a promessa da libertação da dor e do sofrimento, é a certeza de que podemos vencer a natureza hostil que nos esmaga (quantas teorias da civilização fizeram essa mesma pintura da nossa relação com a natureza?) ou inimigo pior, o acaso. No mundo determínismo não há acaso, há apenas ignorância. Como nada acontece por acaso, tampouco há tragédia (ou: não há tragédias que não sejam evitáveis) ou sorte. O determinismo é a aposta no domínio de todas as variáveis, de todas as leis que compõem o universo.
Na auto-escola em que aprendi a dirigir nos mostraram o vídeo de uma mulher que contava como ela ficou paraplégica. Ela se inclinou pra pegar algo no porta luvas, enquanto segurava o volante com a mão esquerda. Ao se inclinar, involuntariamente ela girou o volante pra baixo com a mão esquerda, o carro virou bruscamente pra esquerda, capotou e terminou sem movimentos no pescoço para baixo (acho que suas filhas viajavam com elas, mas não lembro o que lhes aconteceu). Uma tragédia.
O mundo da liberdade é o mundo da responsabilidade e da tragédia. (Bem, a responsabilidade num mundo determinístico também é diferente, porque o sujeito livre é apenas um sujeito adaptado a certos padrões normativos de saúde mental — mas não convém discutir isso agora.) Num mundo de liberdade, nada pode nos proteger da tragédia. A ignorância não é aquilo que nos falta, ela nos constitui tanto quanto o que nós sabemos. A liberdade é uma certa desconfiança na capacidade das explicações, ela é um dizer sim ao destino, no bom e velho sentido nietzscheano**:
Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!
É um belo dilema: determinismo ou liberdade, controle ou tragédia? Eu confesso que entre os dois modelos de representação do poder: o poder de quem controla a natureza e seus eventos e o poder de dizer sim amável e voluntariamente a todo acontecer, eu já fiz minha escolha. Qualquer escolha, no entanto, é imensavelmente compreensível e justificável. O medo é um sentimento muito forte e a gente tem que respeitá-lo. Em certa medida a tragédia é um dos mais significativos mananciais do medo.
PS. Na verdade eu acho que esse é um falso dilema, determinismo e liberdade não se excluem, mas é melhor escrever em outro momento sobre isso.
* Sendo uma perspectiva científica/cientificista, o determinismo supõe a redução das nossas ações às variáveis extensionais (físicas, químicas, biológicas) que lhes constituem. Essa concepção de liberdade oposta ao determinismo supõe uma autonomia (da ação) irredutível às determinações causais, isto é, embora nossas ações não sejam independentes do mundo natural e empírico, elas não são completamente determinadas pela cadeia causal.
** Nietzsche não acreditava numa certa concepção de liberdade que, no meu entendimento, não é incompatível com seu Amor fati.