Há tempos eu defendo a tese de que a simplificação é a estratégia argumentativa mais utilizada. E isso por uma razão simples: lidamos sempre com aquilo que entendemos! Mas se não entendemos suficientemente um tema, de maneira geral estamos inclinamos a dois modos de agir, (1) podemos buscar conhecê-lo mais, complexificando nossa visão, o que implica uma postura ativa frente à questão, (2) ou podemos ajustar o tema ao universo das coisas coisas que conhecemos, uma postura antes passiva. A simplificação acontece quando, em nome da possibilidade de participar de um debate (as razões para isso são as mais variadas), nós distorcemos um tema até que ele se enquadre em certas categorias que nos parecem familiares e com as quais nos sentimos mais seguros em lidar. É claro que a simplificação nem sempre é o mero reflexo de uma certa passividade diante de um cenário (embora ela sempre precise contar com uma disposição semelhante), sem dúvida há simplificações ativas, isto é, que não resultam de uma espécie de preguiça ou falta de compromisso com os temas que se discutem, mas que são antes ações deliberadas, fabricadas para produzir efeitos específicos. É possível então que alguém reduza um debate a termos prejudicialmente simplórios e insuficientes com o intuito não só de ser mais acessível a sua audiência, mas também de dizer o que ela quer ouvir (ainda que disso implique uma descaracterização da coisa da qual se fala). Apagando distinções importantes, não raras vezes se permite a pronta identificação de uma ideia a outras ideias já carregadas de valor (geralmente negativas) e, consequentemente, se produz por analogia um efeito semelhante (o rechaço) sobre a nova ideia. (Por fim, é a própria noção de analogia como estratégia argumentativa que está aí ao fundo, ou seja, a tática de estabelecer um paralelo entre um argumento, suas premissas e conclusão, e outro que se gostaria de apresentar como idêntico, razão pela qual se solicita a mesma conclusão. O argumento ad hitlerum, de Leo Strauss, pode bem ilustrar os resultados da tentativa de explorar o que se supõem ser a analogia entre dois argumentos).
Ser sensível aos interesses da audiência a que se dirige é algo que só pode valorizar o trabalho de quem argumenta, mas se a própria ideia flutua ao sabor da audiência, sem se orientar por nada de “objetivo”, nesse caso é muito provável que o interesse seja estritamente a manipulação de opiniões.
Vejamos um caso ilustrativo. Nas últimas eleições européias um partido de esquerda espanhol, recentemente constituído, tornou-se uma novidade incômoda ao conseguir cinco cadeiras no parlamento europeu. Aqueles que insistem em denunciar a imparcialidade da Globo e da imprensa escrita de maneira geral ficariam estarrecidos ao notar o sem embaraço com que a imprensa na Espanha desanca aqueles que se opõem a suas posições políticas, ou que ameaçam a frágil hegemonia dos dois partidos aos quais se outorga com exclusividade a representação política do povo espanhol. O que ocorre é que há uma campanha sistemática para associar o Podemos a Venezuela — que se seguiu ao malogrado esforço de desconstruir a legitimidade da sua própria estrutura interna. Em que consiste esse esforço de parte da imprensa espanhola? Ora, consiste simplesmente em ignorar a própria história do partido (que tem apenas CINCO meses e que portanto poderia ser conhecida num par de horas) fazendo sobrepor a ela uma associação com a Venezuela que, uma vez esboçada, erode qualquer possibilidade de simpatia pelo partido e suas ideias, por parte de quem, tendo desconfianças das políticas aplicadas lá, não se preocupa em estabelecer diferenças entre o partido espanhol e os partido venezuelano. A força do Podemos se constituiu justamente a partir de uma base de representação quase direta, através de um esforço de diálogo com associações de moradores, assembleias populares e outros grupos civis, por meio do qual se estabeleceram suas propostas e mediante o qual ouviu-se os interesses daqueles que depois tornaram-se seus eleitores. Nada mais distante não só da Venezuela, como do modelo espanhol vigente (e das democracias de maneira geral, combalidas pelos limites enfrentados pela representação política). O último passo dessa campanha foi associá-lo ao ETA.
É claro que seria uma imensa ingenuidade esperar que as pessoas agissem diferente, que não se valessem de situações como essas para promover efeitos que lhes fossem convenientes. Portanto, não escrevo para exortar um debate “justo”, essa quimera que só existe enquanto não consideramos os argumentos como causas possíveis para efeitos desejados. Uma vez cientes de que argumentos são antes de mais nada causas possíveis para ações, os sujeitos que se enfrentam numa discussão pública deixam de orientar-se exclusivamente pelo propósito de fazer-se entender e passa também a enunciar seus argumentos com o intuito levar seus interlocutores a agirem conforme lhes convém. E pra que isso aconteça, bem, não é necessário que se esteja comprometido com nada do que nós nos acostumamos a chamar verdade. Eficiência e verdade aqui costumam caminhar em sentidos opostos. Antes de qualquer coisa, escrevo porque apesar disso tudo, a tentativa de combater a simplificação dos discursos como estratégia de manipulação me parece favorável ao próprio princípio de que o debate público é capaz de promover uma pluralidade de ideias, e que essas ideias depois poderiam serem assimiladas, desenvolvidas, por qualquer uma das partes que participam do debate público, produzindo assim um salutar arejamento político. A simplificação, embora seja eficiente e sedutora, é um meio paralisante, conservador no sentido mais estrito, na medida em que impede que se reconheçam as nuanças de um debate, congelando as categorias o maior tempo possível dentro de um quadro de ideias fixas e familiares. A simplificação tem que ser combatida não com um apelo à transformação das condições argumentativas, em nome do entendimento, mas pelo esforço constante em bombardear o espaço público com nuances pertinentes a certa discussão e, sobretudo, pela tentativa de promover no outro uma visão mais complexa e uma disposição a recusar reduções inapropriadas. (É um processo de educação ou re-educação que, como tal, não pode se instituir sem um certo grau de violência).
É uma luta inglória, pois enquanto a simplificação nada exige, ao contrário, não faz senão reduzir questões mais amplas a termos mais simples e familiares, a tentativa de estabelecer uma questão em termos mais complexos implica, por outro lado, um compromisso maior do que às vezes as pessoas estão dispostas a assumir. E é como sempre a vontade o maior empecilho aqui. Depois da Copa, quando o Facebook e outras redes sociais estiverem borbulhando de coxinhas e petralhas, talvez esse esforço inglório nos pareça mais urgente e necessário.
PS. Não se deve deixar de mencionar que há simplificações que acontecem também pelo simples desentendimento da complexidade de uma questão. Mas nesses casos o próprio diálogo geralmente costuma sanar o mal entendido.