O pantanoso debate entre crédulos e ateus

O

6.52 Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é justamente essa. [Wittgenstein, Tractatus]

É difícil para mim entender porque o debate sobre a existência de Deus mobiliza tantas energias ainda hoje. Não que a questão não deva ser discutida, mas o embate travado entre representantes de lados opostos da discussão está de saída condenado a perseverar indefinidamente. Que entre os seus cada um encontre as melhores alternativas para apoiar ou refutar a crença em Deus, parece justo, mas trazer para arena racional uma questão cujo epílogo não pode ser atingido é intransigência das duas partes. Vaidade e orgulho apresentam-se aparentemente como os reais combustíveis da contenda. Os crédulos, desafiados pela pujança de uma razão que cavalga à toda força no lombo da ciência, não querem deixar de participar da festa, lutam para garantir ao seu Deus a chancela racional que pode capacitá-los a ampliar seus domínios. Os ateus, quase sempre racionalistas convictos, não querem introduzir na já combalida racionalidade contemporânea o às divino — o esforço envolvido na busca por explicações científicas demarca espaços limitados e contextualizados para hipóteses ad hoc, a variável Deus faria ruir todo o edifício. Deus, como uma hipótese, pode ser indefinida e arbitrariamente convocado para explicar a mais recalcitrante anomalia, a ciência, assim, voltaria a se misturar perigosamente aos empreendimentos metafísicos (embora, é preciso reconhecer, uma parcela de metafísica ainda coexista no corpo da ciência em doses aceitáveis e até, diríamos, indispensáveis).

É perfeitamente compreeensível a relutância em admitir uma posição diferente da nossa, quando o que está em jogo são questões que dizem respeito às camadas mais fundamentais sobre as quais se apoiam nossa visão de mundo. Isso já bastaria para declarar o debate improdutível, infrutífero e estéril. Entretanto, certas condições parecem concorrer para inviabilizá-lo de forma ainda mais contundente.

O discurso religioso quando pretende se valer dos instrumentos racionalistas deixa de considerar as (teoricamente) limitadas pretensões da ciência contemporânea. A ciência não é mais o espaço para certezas, seu discurso deve incorporar a contingência como algo estrutural. Quando opomos esse novo quadro às pretensões universalistas e absolutas de uma ciência que se justificava ancorando suas teorias no solo da experiência entendida como algo dado, portanto evidente, parece efeito razoável pensar a contingência como uma imperfeição, um defeito. Mas ela não é, a verdade das proprosições científicas não pode ser definitivamente afirmada, elas não podem evitar a sombra do falseamento, não podem ter o estatuto de necessidade que antes pretendiam e que é reservado apenas às proposições lógicas. É no horizonte de uma ciência imensamente produtiva mas compacta em seus propósitos que o discurso religioso quer instalar um Deus absoluto e necessário? É anacronismo sem par o projeto de racionalização de Deus, da fé. E um tributo que os religiosos prestam aos racionalistas a relutância com que eles mantêm-se presos à necessidade de explicar, provar, demonstrar a existência de Deus. Como se o que não pudesse ser provado, explicado, demonstrado não tivesse valor ou lugar. Nem tudo o que não se justifica é sem razão; porque não pode ser explicada a fé não é imediatamente tornada irracional. Se a racionalidade se definisse pelo conjunto das coisas que podem ser explicadas, teríamos que admitir que boa parte do nosso dia é dedicado à irracionalidade e assim ela não teria tão pouco prestígio.

An hypothetical explanation will be of little help to someone, say, who is upset because of love — It will not calm him (…) Kissing the picture of one’s beloved. That is obsviously not based on the belief that it will have some specific effect on the object which the picture represents. It aims at satisfaction and achieves it. Or rather: it aims at nothing at all; we just behave this way and then we feel satisfied. [Wittgenstein, Remarks on Frazer’s Golden Bough]

Parece difícil aceitar que boa parte do nosso comportamento e que talvez as mais significativas experiências da vida não se deixam agarrar por explicações. Mas por isso mesmo é incompreensível à busca persistente pelo aval científico e racionalista, soa como manifesta baixa auto-estima por parte dos se põem ao lado de Deus.

Os que querem representar a ciência, por outro lado, parecem ignorar rudimentos da lógica que a embasa. Uma negação é uma operação sobre uma afirmativa. Portanto o propósito de negar a existência de Deus estará sempre atrelado aos diferentes meios pelos quais se pretende afirmá-Lo. Se não temos acesso material a nada semelhante a Deus não podemos, a partir disso, extrair a conclusão de que Ele não existe. Essa é uma falácia óbvia. O que se pode fazer é combater cada uma das tentativas, a medida que elas surgem. Não há algo como uma negação absoluta da existência de Deus. Apostar que as futuras gerações haverão de se cansar de elaborar novos expedientes para provar que Deus existe é exibir uma ingenuidade inconfessável. Incompreensível também desse lado a insistência em combater, em persistir na disputa por um espaço infinito.

As energias que cada um reserva para o combate seriam melhor empregadas se dirigidas ao esforço por compreender uns aos outros, e a aceitação mútua. Não há nenhuma maneira privilegiada de lidar com a vida, por mais sedutor que pareça o empreendimento científico ou por mais abrangente e maternal que seja a promessa divina. Aceitar e compreender é uma mostra tanto de uma racionalidade evoluída, quanto de uma divindade manifesta — e é disso que nós realmente precisamos.

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A necessidade implica a verdade de uma proposição e a falta de sentido do seu contrário. Por exemplo, “chove ou não chove” é uma proposição necessariamente verdadeira (uma tautologia), mas não faz sentido dizer que ela é falsa. Essa proposição tem a forma de uma lei lógica, a lei do terceiro excluído, se pudéssemos então falseá-la, ela não teria o estatuto de lei, não teria a estabilidade que a torna operativa. Agora pensem: em que situação real, empírica, podemos dizer que não faz sentido falar em falsidade? E a resposta servirá para fazê-los entender porque as proposições científicas são contingentes e a diferença entre proposições empíricas e proposições lógicas.

PS1. Considere que “chove ou não chove” não é uma situação empírica.
PS2. Há, contudo, lógicas que derrogam leis da lógica clássica, mas essa é outra história.

8 comentários

  • Leonardo, acho que você foi certeiro. Vejo como um problema desta discussão o fato de que cada lado está tão convicto da sua posição (o que é engraçado, em se tratando do tema em questão) que não há propriamente um debate, mas um monólogo onde cada qual fala para sua própria platéia. E há, de certa forma, uma disparidade entre os lados da discussão. Explico: o Idelber, que é um ateu praticante:), certa vez comentou, baseado numa pesquisa, que os mais inteligentes – tomando-se como parâmetro o nível de escolaridade e o QI, são ateus. Provavelmente, há o que se objetar quanto a isso, mas o que quero dizer é outra coisa: em geral, são estes ateus com maior nível de escolaridade, treinados e adestrados a debater na arena das idéias, que advogam a inexistência de Deus. Quem provavelmente poderia contra-argumentá-los com maior sucesso são estudiosos de mesmo nível, teólogos, metafísicos e religiosos sérios. Estes, no entanto, ignoram os ateus e seus argumentos com certo desprezo, como se não merececem atenção. Uma lástima. Sobra para os crentes sem formação, sem conhecimento de lógica, retórica etc. a tarefa de debater com gente fera, como Idelber, no que, obviamente, perdem feio. E não há qualquer avanço, ou pelo menos prazer, no debate. Só rusga.

  • A minha opinião, Cajueiro, é que esse debate nem deveria acontecer, ou pelo menos não com essa dimensão. Claro, é instigante ver uma boa discussão intelectual e o tema inspira boas brigas, mas elas estão fadadas a não ter fim. São por isso improdutivas e meramente performáticas. Não só porque as pessoas não estão dispostas a revisar suas posições, mas porque faltam condições para chegar a um acordo — esse é um dos pontos que eu toco.

    O que traz velhos problemas: que tipo de racionalidade é essa que insiste em caminhar mesmo quando tem um abismo à sua frente? Parece que há outros impulsos, que não os meramente ligados à verdade, animando o debate: vaidade, busca por segurança, etc.

  • Sim, não parece existir finalidade prática na discussão, mas isso acontece também com alguns temas exclusivamente científicos, como certos problemas matemáticos. Acho que o fato de ser fascinante já é um bom motivo para a discussão. Mas concordo quando você diz que ela é meramente performática, porque insolúvel. E concordo ainda mais quanto aqueles impulsos que cita.

  • Sim, são interessantes, mas as pessoas levam tudo muito a sério e logo as coisas excedem o limite de algo meramente fascinante para ganhar outras conotações.

    Se a coisa parasse no mero interesse, mas tudo isso é pretexto para discriminação, brigas, etc. Mas entendo seu ponto, Cajueiro, e concordo.

  • Achei tudo muito genial: você, Léo como sempre foi absurdo: sagaz e exaustivo nos argumentos postos. Cajueiro igualment perspicaz nos comentários: lúcida a constatação da desigualdade entre os agentes no debate para desfazer da pesquisa citada. Tudo muito bom. Espantosamente agradável de se ler e concordar. Agora, eu, como uma racionalista pendulando sempre mais pra crente do que pra agnóstica, me dou o direito à palavra: o que parece não ter sido tocado nem no post nem nos comentários é exatamente aquilo que sempre escapa à discussão própria sobre a existência de Deus. A mim, pessoalmente, parece que este debate nunca se apegou à Lógica, mas apenas à Verdade. Em outras palavras, a discussão sobre a existência de Deus mobiliza ambos os lados porque não discute propriamente sobre o "Deus" que é apenas um coringa semântico: uma carta do jogo de linguagem: significante para o qual cada qual lhe preenche o significado conforme o que lhe convém: mas ninguém pode dizer com certeza se estão todos falando do mesmo "objeto". E outras palavras: a discussão sobre Deus camufla outras discussões, entre elas a discussão sobre a possibilidade humana de conhecimento da Verdade, o que tbém é a discussão sobre se existe uma verdade, no que se refere ao aspecto "lógico", e, finalmente, e aqui é o que sempre penso sobre essa discussão, e o que torna menos absurda para mim: este é tbém um debate sobre a Moral. Um crente defende seu Deus dizendo que este é poderoso e tudo criou, não para fazer frente ao Darwin, mas para hastiar a bandeira contra a Pretensão humana, a favor de uma Humildade seminal que o homem deve ter em tudo que pensa, deseja, almeja: uma lucidez sobre nossa limitação em compreensão e em ação: um Respeito pelo enigma de existir. Evidentemente, essa discussão se perde completamente em outros meandros, e, concordo até o fim, é sempre improdutiva e estéril, se chegar a acordos: mas ainda: simplesmente defendo que não é pr mera vaidade ou fascínio que a discussão prossegue, mas por uma dificuldade em ambas as partes de nomear corretamente, e alcançar mesmo o núcleo duro daquilo que estão defendendo. Não é uma discussão estéril porue parte de fundamentos imiscíveis, mas porque é feita sobre significantes errados. É tudo quanto penso que explica por que até hoje ela perdura e persevera…

  • Nanda,

    No sentido em que você usando o termo, não "existe" verdade. Do mesmo modo, não dá pra confirmar se as pessoas estão falando de um mesmo Deus. O que "confirma" que estamos falando de coisas relativamente semelhantes é o fato de nos entendemos, de usarmos o conceito na nossa vida cotidiana sem problemas. Não importa o objeto ao qual ele se refere, nem mesmo importa que ele exista ou não. Isso não muda nada.

    Mas o que significa esse "conhecimento de Verdade"? A filosofia do século passado muda a pauta, essa pergunta, tão nobre durante longos séculos, já não faz sentido, porque suas bases já foram solapadas, seu interesse já se dissolveu em comentários que lhe negaram mesmo o sentido. Há muitas armadilhas escondidas, labirintos até, nessa formulação. Mas se você olhar bem, quando eu me refiro à ciência, tangencio questões relativas à verdade, ao estatuto da verdade nessa nova abordagem da filosofia e da ciência.

    Bem, quanto à lucidez e a humildade que você pensa que falta aos homens — por uma certa falta de conhecimento de seus próprios limites. Bem, primeiro, acho que não é esse problema. Segundo, a limitação não é paralisante, lembremos Mario Quintana:

    Se as coisas são inatingíveis… ora!
    Não é motivo para não querê-las…
    Que tristes os caminhos se não fora
    A mágica presença das estrelas!

  • Poxa, Léo, vc realmente respondeu tudo isso a… mim?

    É lindo!, mas, realmente não entendi o que tudo isso tem a ver com meu comment.

    Em tempo: não sou eu que penso em discutir a existência da verdade, nem ignoro a filosofia posta: talvez o modo correto de me expressar seja dizer que creio que essa discussão é exatamente uma discussão filosófica de naipe idêntico àquela acadêmica, mas feita de termos compartilhados entre crentes e ateus, e não entre Platão e Protágoras, Kant e Hume, ou sei lá entre quem.

    "Deus" aí não é diferente de se falar em Id, Ego, e Superego em Freud: a existência de nenhuma dessas instâncias é fato "comprovável" no ser humano. Mas anti-freudianos poderão contestá-las encarniçadamente.

    Ainda: essa discussão, isso é talvez o que eu quisesse dizer, não visa chegar a um acordo sobre se existe Deus ou não, mas a disputar por aquilo que é instituído como efeito dessa crença.

    Particularmente creio que são legítimas tanto as preocupações de ateus como de crentes nisso: acreditar ou não em Deus produz efeitos benéficos e maléficos nas atitudes humanas perante o mundo e os outros.

    Agora, sobre o que vc agora me disse, é uma bonita poesia!

  • Nanda,

    Nesse sentido, sim, eu acho que a conversa pode ser legítima — embora, talvez, não menos improdutiva.

    E é nesse sentido que Nietzsche, por exemplo, reflete sobre a crença em Deus. E aqui eu sou um ateu empedernido. A solitude coloca o homem na função de construtor, de agente, enquanto que no papel de criatura ele quase sempre se abriga no comodismo e na segurança.

    Curioso, porque o deveríamos esperar de quem tem fé nos "valores cristãos", por exemplo, maior compaixão e uma postura mais ativa, segundo preceitos da sua própria fé, mas na verdade a única coisa que interessa a eles é a segurança que Deus pode dar, nada mais. Enfim, essa é realmente uma discussão longa.

    Mas eu também não entendi a relação entre esse seu comentário e o comentário anterior, a questão sobre a Verdade e tal.

Por Leonardo Bernardes

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