Durante anos motivos insondáveis me impediram de assistir Amadeus. Semanas atrás, decidido a reparar o erro, baixei o filme. Após alguns dias de hesitação, resolvi finalmente assisti-lo. O filme é excelente, mas a premiada atuação de Fahrid Murray Abraham é assombrosa. Ele consegue reproduzir, ou melhor, ele vivencia a paixão pela música com perfeição. Felizmente, todas as cenas que me interessam estão no Youtube, alerto meus caros leitores que os próximos comentários contêm spoilers (mas quem além de mim ainda não assistiu esse filme?).
Antes de tudo, Salieri — personagem de Murray — é um apaixonado por música, o que, por si só, já vale uma identificação. Apesar da sua ambígua função no filme, as passagens em que ele comenta a obra de Mozart são nada menos do que fabulosas. Na primeira delas, quase entorpecido, Salieri descreve o início da Serenata No. 10 de Mozart para instrumentos de sopro. O áudio não é dos melhores, mas ao fundo se ouve a melodia enquanto a voz de Salieri se sobrepõe a ela. A simplicidade inicial mal deixa ver a grandiosidade que se avoluma à medida que os elementos vão se incorporando à melodia. Fagotes, trompas se avizinham quase despretensiosamente. Um oboé e então por fim um clarinete que, segundo Salieri, harmoniza o conjunto com enorme graça. É um abuso imperdoável de minha parte descrever a interpretação majestosa de Murray — mas ao mesmo tempo é quase inevitável. O diálogo e a realização do ator tem a clara pretensão de mostrar como a genialidade de Mozart faz a composição de elementos aparentemente triviais um feito celestial. Não sem surpresa o diálogo termina com a constatação de que o que se apresenta ali não é outra coisa senão a própria voz de Deus. No mesmo diálogo, porém, já se entreve a inveja mortal que corrói as vísceras de Salieri.
A paixão pela música e sua incomparável sensibilidade são, ao olhos de Salieri, o céu e o inferno. Para alguém que com todas as forças desejava brilhar através dela, reconhecer a genialidade almejada na figura de Mozart era como sentir um punhal no próprio peito. Isso porque — perdoem minha absoluta ignorância acerca da biografia de Mozart — o compositor é apresentado como uma figura algo ingênua, irresponsável, quase um garoto. Um garoto a quem se investiu o privilégio de ser o veículo da própria voz de Deus — inadmissível! É esse o sentimento que irá marcar a hipócrita relação que Salieri manterá com Mozart. Contudo, na sinceridade de sua própria alma, ele não deixará de manifestar uma completa devoção à sua obra. Quando na segunda cena Salieri toma em suas mãos algumas das peças inéditas de Mozart, êxtase e rancor se entremesclam. Era a mostra definitiva de que não havia acidente no que até então ele havia presenciado, Mozart era um gênio sem par e suas músicas a substância mesma da beleza em estado puro. Foi a gota d’água que precipitou o fim da estremecida relação entre Salieri e Deus. Inadmissível que ele seja o escolhido, um garoto arrogante, leviano, bárbaro — um performing monkey, como o denominou debochadamente.
Cego de rancor, Salieri decide vingar-se da injustiça divina fazendo da vida de seu prodígio um inferno. E é assim que se estabelece a ocasião para o que há de soberbo no filme. De fato, reveses começam, um após o outro, a despontar na vida de Mozart. A personalidade forte mas sem direção vai se consumindo em bebidas e outros vicios degradantes. Surpreendentemente, Salieri parece estar vencendo o embate com Deus. Mozart enfim cai doente. É o próprio Salieri quem o assiste, levando-o até sua casa. Lá, dissimulando como sempre, Salieri se oferece para ajudar Mozar a terminar o Requiem que ele mesmo havia secretamente encomendado. Tudo parecia correr conforme seus planos. Mas a experiência de auxiliá-lo não pudia ser prevista e a cena que em que os dois trabalham juntos eu acompanhei com os olhos marejados de pleno entendido do que estava em jogo naquela circunstância. Salieri se esforçava para acompanhar a mente que, mesmo doente, voava — a verve fervilhante de um gênio. Murray faz magistralmente transparente esse transbordamento das pessoas comuns, ele mal conseguia entender. Só após algum tempo, aí sim, tudo parecia não só natural, mas necessário. Salieri escrevia conforme ditava Mozart. Cada etapa, cada nota, era vivenciada como se ele estivesse tomando parte dos próprios desígnios divinos. O ritmo da criação era ele mesmo apaixonante; inicia com menor vigor até atingir uma cadência inalcançável. Uma tal experiência vai fazendo ruir a máscara que ocultava a mediocridade de Salieri. Por seu turno o garoto irresponsável, insolente, leviano, arrogante, gradativamente se agiganta. E, ao contrário do que poderíamos imaginar, Salieri aceita seu papel. É como se aos poucos — numa linha subliminar do próprio roteiro — ele fosse se dando conta de suas próprias limitações, abrindo espaço para a vitória de Deus. Mas o triunfo divino vem num gesto de graça: após passar a noite trabalhando, Mozart está extenuado e em seus instantes finais. Ainda sim, pergunta generosamente a Salieri se este não quer descansar. Depois da negativa ele se ri com a mesma ingenuidade que outrora havia sangrado Salieri, zomba de seus próprios pensamentos. Diz que foi um tolo ao pensar que Salieri não ligava para ele ou para sua obra e lhe pede perdão. Assim, a vitória de Deus não vem na força pujante de um gênio que esmaga a mediocridade alheia, mas na humildade cristã que põe a nu a mesquinhez dos sentimentos de Salieri. Ele se vê ali não só como testemunha da própria criação divina manifesta, mas na presença de um espírito tão grandioso que é capaz de pedir perdão ao seu carrasco. O homem a quem havia matado, seu ídolo, mostrava-se uma criança frágil, desejoso da sua aprovação e angustiado por pensar que não era bem quisto. Era como se o próprio Deus através daquele perdão honesto, da sinceridade infantil de Mozart, descortinasse a grandiosidade do gênio ao tempo em que revelava a insignificância de Salieri. Não era uma vitória simples, era um triunfo sem igual, insuperável, e que haveria de deixar marcas indeléveis no próprio Salieri.
Claro, tudo isso é mero simbolismo, mas de um engenho e sutileza que fazem o filme certamente singular. A interpretação dos atores é incorrigível e contribui decisivamente para o êxito do filme. No entanto, o que realmente me fascina é a cena que descrevi e suas consequências — o gênio perseguido que inadvertidamente pede perdão ao seu carrasco e o desarma. Salieri daí em diante só pode viver se penitenciado pela sua própria arrogância. Além da interpretação arrebatadora de Murray, o comportamento de Salieri inspira alguma identificação. É que apesar da mediocridade comum, eu penso que tenho, como tinha Salieri, uma sensibilidade para a beleza e para as significações subliminares que se instalam frequentemente na música, mas também em um sem número de outras situações. E de fato há algo de quase revoltante nessa inépcia senão para enxergar a beleza do trabalho alheio. Mas também algo de gracioso — no sentido próprio da palavra. Dessa forma Salieri renegou os seus próprios dotes, pois foi o único que realmente enxergou a dimensão da música de Mozart. A metáfora de vitória divina, do triunfo sobre a arrogância da mediocridade, é certamente o ponto máximo do filme e ainda hoje faz vacilar as minhas convicções ateístas. É que a música, para mim, sempre foi o mais pungente argumento, isto é, a sua irredutibilidade e a sua impossibilidade de ser explicada pelos próprios termos que a constituem o mais forte argumento em favor de Deus do que a mais elaborada prova ontológica.
PS. A falta de tempo tem feito do cinema a minha única fonte de inspiração. Perdoem-me! Não faço outra coisa além de me ocupar de leituras filosóficas. Em breve, quem sabe, o cenário mude.