O ativismo é uma praga

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Minha opinião apressada é que há muito tempo não há nada, ou quase nada, de interessante no pensamento político que vem dos EUA (com notáveis e importantes exceções). Não me levem a mal, eu acho que há coisas interessantes em sua história, mas faz tempo a importância cultural dos EUA produz uma perniciosa universalização das formas de ação política deles. Ou pelo menos essa é a impressão que eu tenho quando olho para Brasil e para a Espanha. O movimento negro é basicamente um derivado das formas de luta política dos negros de lá, o mesmo se pode dizer sobre o movimento feminista, e não há luta política que não esteja pautada fundamentalmente pelo modo como as pessoas nos EUA lutam.

Para entender a influência e o contexto do pensamento político dos EUA é preciso entender o papel da ação na sua filosofia. Boa parte da filosofia norte-americana é essencialmente pragmatista e se deriva do pensamento de filósofos como Charles Peirce, John Dewey, William James, entre outros. Afirmar a ação como o eixo do seu pensamento significa dizer que esse pensamento tem uma perspectiva muito particular em relação ao papel da teoria: a teoria não é desvalorizada, mas há um quadro conceitual completo que estabelece de modo claro a relação entre teoria e prática, e o papel preponderante da ação. Por exemplo, em epistemologia isso pode ser constatado na epistemologia naturalizada de Willard Quine, que subordina a temida epistemologia e suas pretensões absolutas a uma psicologia histórica e contingente que precisa reexaminar sistematicamente as práticas para fazer suas assunções; em psicologia isso se expressa no predomínio do behaviorismo, por oposição ao mentalismo característico da filosofia e da psicologia europeias. Para onde quer que a gente olhe, no pensamento norte-americano, estará estampado, de alguma forma, a marca desse primado na ação.

Epistemology, or something like it, simply falls into place as a chapter of psychology and hence of natural science. It studies a natural phenomenon, viz., a physical human subject. This human subject is accorded a certain experimentally controlled input —certain patterns of irradiation in assorted frequencies, for instance — and in the fullness of time the subject delivers as output a description of the three-dimensional external world and its history.

Willard Quine, Epistemology naturalized

No pensamento político não é diferente. O que acontece é que a epistemologia não se populariza, por razões óbvias, mas a política sim se populariza. E o significado popular de uma política que põe ênfase na ação é o ativismo, que é uma forma leve de anti-intelectualismo. Bem, talvez não seja tão leve assim, mas o ativismo é a ênfase sobre a necessidade de intervenção imediata como instrumento de transformação política e social.

Esse é o contexto genealógico, o pano de fundo da ideia, mas foi a internet que tornou o ativismo um fenômeno global. Até bem pouco tempo eu não havia me dado conta de algo bastante óbvio: a internet mudou radicalmente o modo como as pessoas entram em contato com a política. Antes havia um grande contingente de pessoas excluídas da política e dos debates políticos, porque em termos gerais o contato com a política se dava principalmente por meio de teorias políticas (livros) ou de movimentos civis. Pode parecer que o militante — palavra já em desuso, mas que até bem recentemente era muito comum — e o ativista são o mesmo, mas isso não é verdade. Ainda que o militante tenha a orientação à ação em comum com o ativista, sua perspectiva raramente está tão distante de um marco teórico — mesmo quando esse marco tem apenas papel justificativo, isto é, quando serve apenas para conferir legitimidade às suas ações.

Nesse novo mundo no qual as pessoas entram em contato com os debates políticos por meio da internet, o próprio enquadramento das questões muda. Questões de gênero, questões raciais e étnicas, debates sobre ecologia e direito dos animais moldam profundamente o modo como esses atores entendem a política. Se antes havia a possibilidade de que muitos estivessem excluídos dos debates, agora isso é quase impossível. Daí que exista uma politização crescente que, ao mesmo tempo, acompanha um empobrecimento do debate político. Nesse contexto, tanto os jovens quanto as pessoas mais velhas, ou os adultos que antes da internet não se interessavam por política, são empurrados a participar da ágora digital. E o que se discute na internet? Certamente não o fim do capitalismo.

É certo que a própria ideia de pós-capitalismo tem ganhado uma força surpreendente na internet, com memes circulando como coisa banal mesmo em páginas populares como o Melted videos. Mas o fato é que o contexto moldado pelo predomínio dos temas mencionados antes tende a dar ao debate um tom vagamente reformista, mesmo quando o que se discute é algo semelhante à crítica à centralidade do trabalho na vida humana que enuncia Marcuse, por exemplo, como no caso do Quiet quitting. Não é por acaso que o contexto seja meramente reformista, mesmo quando as críticas parecem sugerir algo mais forte: no fundo, grande parte do que se discute na internet tem como origem a cultura dos EUA. E quais são os elementos determinantes dessa origem, além da ênfase no papel da ação que já mencionei?

A cultura dos EUA é profundamente individualista, portanto, as pautas políticas e a ação política estão enquadradas num marco individual. Esse é o lugar da influência e dos influenciadores. Por que será que artistas, modelos, e toda a sorte personalidade pública hoje em dia exibe garbosamente em seus perfis nas redes sociais o título de ativista? Porque há um valor embutido em não ser um mero expectador ante as injustiças do mundo. Assim como as empresas faturam (simbolicamente ou não) com o fato de seres “responsáveis”, as pessoas físicas também precisam ostentar seu engajamento em lutas políticas para que seu valor seja incrementado por esse compromisso. Isso significa que as pautas políticas estão fundamentalmente subordinadas à questão das Relações Públicas (publicidade), isto é, à preocupação em controlar a percepção que os outros têm de nós e à questão do poder de manipular o que os outros querem e fazem (influência). No mundo das redes sociais, o ativismo é uma questão de poder mascarada, camuflada e disfarçada de preocupação política e de engajamento numa luta.

Assim, o ativismo transforma o debate público numa competição velada para saber quem tem mais poder de influenciar seus seguidores (sua audiência, seu público) a pensar e agir como se deseja. Não importa se o debate é em torno do aquecimento global e seus efeitos, ou sobre como as mulheres devem manifestar sua sexualidade, os ativistas estarão sempre misturando suas boas intenções ao exercício do seu poder (do qual não abrem mão). Nesse contexto, as lutas nunca têm um papel transformativo porque elas são em boa parte das vezes meramente performáticas, ou seja, são teatro e fingimento encenados por pessoas a fim de controlar como os outros as percebem, e não ações espontâneas, constrangimentos ditados pelo amor (ou até por um senso de dever, no pior dos casos). As coisas (reais && verdadeiras) manifestam e expressam essa verdade de modo muito mais convincente e imediato que qualquer encenação, que qualquer teatro feito para iludir um público. O ativismo aceita o jogo do marketing digital, jogo bem representado em séries como Succession e em The Fall of the House of Usher. Um jogo complexo e articulado em torno da publicidade é o que resulta da luta dos ativistas, mais uma variação de um teatro que não tem nenhum compromisso em desestabilizar o palco em que está situado, pois o poder do ativista depende dele (vide as espirais de prazer e poder, de Foucault).

Verdade bastante elementar

O papel da publicidade nas lutas políticas das novas gerações é um tema à parte, imensamente complexo, e eu gostaria de tratá-lo num outro momento. Mas o que fica é a sensação de que o ativismo é uma praga, que se espalha rapidamente à medida que todos na internet se sentem compelido a agir e reagir diante de um público (uma audiência). Todos somos influenciadores, alguns assumem o desafio de criar, de fazer crescer e engajar essa audiência, outros apenas mantêm seu nicho, mas é quase impossível recusar esse poder de influenciar e os efeitos que esse poder cria na política, na nossa subjetividade e intersubjetividade. Resgatar a ação política do circo e do circuito publicitário do ativismo significa fazer a política voltar a ser, não uma questão de poder individual camuflada, mas uma reflexão sobre o que fato de que somos animais políticos (zoon politikón). A reflexão orientada à questão prática de saber como agir e se posicionar sobre os problemas dos outros, sobre a questão da sociabilidade, ainda é o principal problema humano.

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