O Livro do Desassossego é desconcertante, os temas passeiam nele amarrados por um elo quase invisível. E as coisas que surgem assim, quase ex nihil, são frequentemente focos de reflexões profundas que, hoje em dia, poderiam alimentar teses e mais teses de doutorado. Tudo está ali apresentado como coisa aparentemente casual, amealhada distraidamente. Vejam esse parágrafo onde Bernardo Soares começa a discutir o romantismo e os românticos:
A personagem individual e imponente, que os românticos figuravam em si mesmos, várias vezes, em sonho, a tentei viver, e, tantas vezes, quantas a tentei viver, me encontrei a rir alto, da minha idéia de vivê-la. O homem fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares, e o romantismo não é senão o virar do avesso do domínio quotidiano de nós mesmos. Quase todos os homens sonham, nos secretos do seu ser, um grande imperialismo próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres, a adoração dos povos, e, nos mais nobres, de todas as eras… Poucos (são) como eu habituados ao sonho, são por isso lúcidos bastante para rir da possibilidade estética de se sonhar assim.
É como se ele falasse de um realismo romântico, como se dissesse: “para a maioria das pessoas esse é o Real”; a despeito das pretensões de determinação e objetividade, eu acrescentaria. O “imperialismo próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres” é simplesmente fantástico! Mas a conversa de botequim ainda não terminou e ele ainda não expôs completamente sua tese sobre o romantismo:
A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visualizado, até possível, se o ser possível dependesse de outra coisa que não o Destino.
O sonho é a verdade interior da natureza humana, poderíamos até mesmo dizer que é concreto; o sonho e o possível (não o atual), aquilo que vive dentro de nós quase como delírio. Como aquilo que vive na alma pode ser concreto? Essa é uma clara afronta ao modernismo cartesiano, às pretensões do cogito, e a tudo que ele inaugura. Bernardo remata a consideração distanciando-se destes sonhadores que, embora reconheça como irmãos, não têm algo o que ele possui:
Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distração, me encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser ameigado, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre próximo como uma rua da Baixa. Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escritório da Rua dos Douradores e os rapazes são um obstáculo. Ouço-me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega ao quarto andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu quarto barato, com o que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha […] ao sonho
Há em tudo isso não apenas uma espécie de elogio à fantasia, mas também, quase paradoxalmente, uma ode à lucidez e ao que se opõe aos desvarios do sonho. O que detém esse impulso ao sonho e à fantasia no próprio Bernardo? Nada mais, nada menos que um outro eu que gargalha ao deparar-se com as aspirações românticas, com o realismo romântico e sua concretude cotidiana. Essa é a solução mais onerosa e mais custosa do ponto de vista filosófico, inventar um novo eu que refreia o impulso de fantasiar, que equilibra porque ri e não leva a sério, seria simplesmente absurdo e patético, se não fosse divino, se não constituísse o próprio eixo da criação da obra de Fernando Pessoa. Esse eu que gargalha das pretensões românticas planta seus pés no chão sem chegar a esterilizar a imaginação, ele é uma parte do “real” internalizada, como a mobília do quarto que, por sua materialidade vulgar, impede que os aplausos que vêm do sonho sobreponham-se à realidade mesquinha da rua dos Douradores. Se um eu prefere o material e mesquinho, o outro faz do sonho a sua morada e seu próprio real.. e qual deles prevalece? Por que precisa haver uma prevalência? Esse é o lugar da poesia e o modo dela nos lembrar da irredutibilidade do Real à verdade (e ao conhecimento).