Eu sou do time dos que acham que se a gente não tem dispositivos legais ou políticos para impedir que uma presidenta eleita seja injustamente deposta, a gente tá fodido! Não é como se nós tivéssemos perdido uma coisa qualquer, algo sem importância, e não nos restasse mais que olhar pro outro lado, dizer “a vida é dura!” e admitir que esse é o fato!
Simbolicamente, é a arbitrariedade máxima! Querer construir um sistema de justiça que admite que a figura máxima do poder político possa sofrer arbitrariedade parecida com a que sofrem diariamente os milhões que fazem parte desse sistema é como querer construir um computador usando ovos. Se a justiça não existir pra ela, pra quem existirá?
Esse não é nenhum elogio a autoridades, que fique claro (que não sou dos seus maiores simpatizantes), mas é simplesmente insano viver num sistema de autoridades (como é o Estado de Direito) e permitir que a autoridade máxima esteja exposta a conchavos e conspirações de poderes paralelos. — Faz sentido chamar as decisões e intervenções de agentes de poderosas classes econômicas de poder paralelo? Faz, se você acredita no Direito, na Justiça, na Institucionalidade, essas palavras bonitas que circulam pela política e pelo discurso político-jurídico; faz, se você acreditar que uma coisa é a justiça, outra coisa é economia, e que embora elas se entremesclem aqui e ali, são e devem ser coisas diferentes.
“Na prática, a teoria é outra”, como bem lembrava Celso Rocha de Barros no título do seu blog (e no seu Twitter). Não é que a teoria seja outra, é que a prática vem antes da teoria, a Praxis vem antes da regra: “No começo era o ato!” — mas isso não vem ao caso agora. Na prática, o dinheiro não se dobra às leis, ele as molda, e quando não pode simplesmente ditá-las, compra aqueles que as escrevem ou os que as interpretam. Dilma não foi destituída porque os ricos assim determinaram, o poder econômico não é absoluto, mas quando as condições eram favoráveis, eles souberam amparar e mexer os pauzinhos para substituí-la por alguém servil à sua agenda — a revelia dos interesses da República e das consequências institucionais dessa estratégia. Assim, começa o governo Temer-Bolsonaro; assim começa 2016: A (re)conquista do Estado (sic), a formação de um novo governo civil-militar.
O poder econômico agiu por duas vias principais quando o telefone tocou e lhe ofereceram a oportunidade de fazer parte de um grande acordo nacional: apoiando a blindagem dos tucanos na Lava-Jato, para que o espólio eleitoral da derrota do PT viesse pro PSDB em 2018; e construindo internamente, ainda no governo Temer, o esteio do que viria a ser o governo de Bolsonaro e de seu preparadíssimo ministro Paulo Guedes. Blindar o PSDB nunca foi difícil no Brasil, todos sabem disso desde antes que Geraldo Brindeiro tivesse virado Engavetador Geral da República, ainda mais tendo Sérgio Moro como principal ator no circo da Lava Jato. O plano era voltar a colocar um tucano no governo, era o sonho da Faria Lima. Bolsonaro foi improviso, coisa de última hora, mas com o doutorado de Paulo Guedes em Chicago ele poderia ser apresentado à massa cheirosa (sic), por avatares do pensamento nacional como Rodrigo Constantino e Guga Chacra, como representante da inteligentíssima entidade Mercado (entidade à qual devemos todos devoção).
Toda essa digressão pra dizer que o poder econômico é o único poder real, ou pelo menos o mais influente e determinante (mesmo em sociedades de sólidas instituições; o EUA é uma delas?) e o Direito como elemento constituidor (ou canalizador) de um poder popular não é nada mais que um belo espantalho no qual podem acreditar nós que vivemos em países da bolha ocidental. E esse poder real só existe porque existe o capitalismo, e por mim tá tudo bem se a gente quiser acabar com ele, mas se você não quer isso e ainda acredita em Direito, em Democracia, e acredita que essas palavras abstratas podem funcionar junto com a ideia de capitalismo, essa outra palavra bem concreta, você precisa defender a todo custo uma hierarquia de poder. E você não tem escolha! O poder político está hierarquizado no Estado de Direito, e sua pretensão, seu ideal, é que a justiça se estenda a todos os membros desse Estado; por isso é uma condição necessária para concretizar esse ideal que as autoridades que constituem a hierarquia desse poder tenham condições de realizar a vontade dos seus representantes, no caso dos políticos, e a função que lhes compete no estado, no caso dos funcionários públicos — para usar dois tipos de autoridades como exemplo. Se você não puder garantir a justiça nem para esses poucos privilegiados que fazem parte dessa hierarquia, para que eles possam cumprir seu papel estrutural, como é que vai constituir um sistema que garanta a justiça para todos? You tell me! Fala-se muito em instituições, mas o que são elas? Bem, o que se sabe é que há uma estabilidade, uma regularidade característica da coisa pública dos países onde há instituições fortes; são os modelos que nos inspiram, não é verdade?
A estabilidade a que nesse caso damos o nome de institucionalidade é o contínuo compromisso, um compromisso que se estende no tempo, de fazer com que as entidades públicas atuem de maneira regular, ordenada e previsível, conforme entendimento bem estabelecido sobre leis e princípios, entendimento que deve necessária e primordialmente se manifestar em práticas institucionais, em ações que não se desviam de consensos e acordos públicos que têm papel fundamental e força quase inexorável. A força institucional de um país é um antídoto contra a arbitrariedade (e a tirania). Quando permitimos que uma presidente honesta fosse deposta, jogamos no lixo as incipientes instituições que temos alentado e construído nas últimas décadas e abraçamos a arbitrariedade. O resto é conversa.
Não convém permitir que a força da anti-intelectualidade no debate público brasileiro, que está por toda parte e em todo espectro político, transforme esse debate numa banalidade, em algo trivial e sem importância. Não é tão difícil assim de entender, ou estamos num Estado de Direito e a política não é um vale tudo, ou não estamos. Se alguém quiser formar outra sociedade, mais simples (menos complexa), horizontal e auto-organizada, eu topo, mas viver nessa e tratar como trivial a destituição ilegítima de uma presidenta é desprezar o Direito e fingir cínica ou estupidamente que não despreza. Quem quiser que argumente em contrário.
Tudo isso me lembra um texto que escrevi em 2008, sobre a diferença entre julgamento técnico e julgamento político. O foco crítico era o mesmo: normatividade (Direito) versus arbitrariedade. Nunca poderia imaginar que, 14 anos depois, a ideia de arbitrariedade tivesse ganhado tanto importância na minha vida e nas minhas ideias pelo que ela tem de opositiva à ideia de determinação.
O texto que escrevi sobre o Golpe Parlamentar em si (Golpe: modo de usar) não é um texto preocupado em justificar como verdadeira ou falsa a hipótese do golpe, mas interessado em refletir sobre a plasticidade dos conceitos e do próprio sentido, e sobre a relação do sentido com o campo intencional. Meu objetivo era mostrar que não importa quantas opiniões ilustres, quanta bibliografia você consegue reunir para apoiar uma concepção correta sobre o que deve ser classificado como golpe e para falsear uma concepção concorrente, incorreta e falsa, o sentido de conceito não se reduz às pretensões veri-funcionais da argumentação. Mas esse é um texto precário, dada a importância (e extensão) da discussão. Para ler alguma coisa muito melhor sobre o tema, sobre essa mudança de estatuto lógico, recomendo a nota de rodapé na que Bento Prado Jr. escreveu sobre as mudanças no pensamento de Freud, usando conceitos kantianos. Isso é para ler de joelhos!