O livro A vontade de saber, de Foucault, oferece alguns elementos para pensar o emprego da via pedagógica direta como recurso no combate à homofobia.
Antes, infelizmente, é preciso fazer aquele détour costumeiro — e, frequentemente, trampolim para a homofobia propriamente dita — que consiste em dizer que meu propósito é tão somente refletir sobre as medidas aventadas. Apoio incondicionalmente o propósito que as anima, mas não estou certo de que esse seja o melhor caminho para enfrentar às dificuldades postas. Bem, essa nota pretende evitar o açodamento daquele tipo, comum a todas as classes, que evita o diálogo lançando na vala comum todo posicionamento contrário.
Para Foucault, os momentos históricos frequentemente considerados catalisadores da repressividade sexual — como aquele no qual surge a familia burguesa — coincidem, em verdade, com a violenta multiplicação de discursos sobre o sexo, começa ali a ser definida uma “norma de desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis”. E ainda mais: “organizaram-se controles pegagógicos e tratamentos médicos”. Aqui já estão postos fatores mais que suficientes para propor uma avaliação crítica, mas convém documentar ainda mais a avaliação, a fim de fazer entender a complexidade da organização que toma a pedagogia como um dos seus pontos axiais.
Fundamental é realçar o modo como a instituição da norma engendra o espaço em meio ao qual se reconhecem as práticas conforme (práticas heterossexuais, forma de sexualidade regular) e não conforme (práticas homossexuais, e outras práticas que refletem formas de sexualidade periféricas) a norma. Foucault afirma que os códigos (direito canônico, pastoral cristã e lei civil) recaiam e fixavam-se nas relações matrimoniais. As recomendações e constrições que impunham forçava um receituário rígido às práticas sexuais dos cônjuges. Ele reconhece também que “as regularidades devidas aos costumes e as pressões da opinião” exercem um papel, mas certamente não tão rígido e investido dos poderes e instrumentos coercivos que os códigos mencionados acima. Assim, o que estava fora desse horizonte enquadrado pela prática sexual no matrimônio, decerto poderia ser condenado, mas não com o mesmo vigor, pois não estava sob a mesma vigilância.
O ‘resto’ permanecia muito mais confuso: atentemos para a incerteza do status da ‘sodomia’ ou a indiferença diante da sexualidade das crianças.
É o próprio Foucault quem nos chama a atenção para a condição do que, depois, ele designará como sexualidades periféricas. A lei ditava a norma e mesmo aquilo que parecia “contra a natureza”, ele diz, só era digno de atenção na medida que consistia também numa contrariedade à lei. “Os hermafroditas foram considerados criminosos”, pois sua condição embaraçava a lei que distinguia os sexos.
Mas a história caminha no sentido de modificar esse cenário. A monogamia heterossexual ainda é a regra, mas os rigores que se ligam às práticas sexuais tornam-se mais silenciosos — embora nem por isso menos vigorosos e poderosos. A atenção antes dispensada ao “casal legítimo” e sua “sexualidade regular” passa a dirigir-se gradativamente à sexualidade das crianças, dos loucos e criminosos. “Todas estas figuras, outrora apenas entrevistas, tem agora de avançar para tomar a palavra e fazer a difícil confisssão daquilo que são”.
Crianças demasiado espertas, meninas precoces, colegiais ambíguos, serviçais e educadores duvidosos, maridos cruéis ou maníacos, colecionadores solitários, transeuntes com estranhos impulsos: eles povoam os conselhos de disciplina, as casas de correção, as colônias penitenciárias, os tribunais e os asilos.
Importa notar o movimento que tira o “resto” da sua condição indistinta, para lançá-lo no centro de uma força taxonômica implacável. Ou seja, a distinção do que era antes uma massa disforme supõe o surgimento dos saberes que impulsionam a classificação e aguçam o olhar discriminador (daí o título do primeiro livro da História da sexualidade, A vontade de saber). Não sem razão, Foucault observa que “a justiça cede em proveito da medicina” e que surgem aí mecanismos suplementares encarnados em “instâncias de controle e em mecanismos de vigilância instalados pela pedagogia ou pela terapêutica”. O foco das preocupações de Foucault invariavelmente recai sobre a terapêutica, sobre o modo como a instituição dos saberes psiquiátricos, em particular, abre espaço para uma ampla gama de instrumentos que espraiam sobre as práticas (e as práticas sexuais) o olhar inquiridor e as microvilosidades de uma rede de poder. Mas aqui nos interessa em particular a pedagogia — como interessa a Wittgenstein, não a pedagogia, mas a importância lógica que o treinamento (educação) adquire na constituição daquilo que julgamos “natural”.
Os saberes classificam tipos, impõem uma norma de desenvolvimento e um padrão de comportamento onde antes havia apenas figuras e práticas indistintas. E a pedagogia está no centro dessas mudanças. Mas avancemos na leitura de Foucault antes de apresentar avaliações sobre o caso. Ele nos diz: “Esta nova caça às sexualidades periféricas provoca a incorporação das perversões e novas específicação dos indivíduos”. Segundo ele, data em 1870 o ano de nascimento da categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade, a partir do “famoso artigo de Westphal”. Talvez a mais emblemática formulação das mudanças operadas pela instituição da norma esteja representada aqui: “O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie”.
O gesto de aparência banal de transformar uma prática recorrente na expressão de um tipo reflete o nascimento de uma categoria, de toda uma estrutura na qual ela se enquadra, onde ela se identifica.
Diante desse quadro, parece difícil imaginar que a pedagogia possa ser o veículo de transformação de um cenário que ela ajuda a manter. Não se trata nem mesmo de uma questão pontual, isto é, da ineficiência de um regime educacional preocupado em combater práticas homofóbicas, trata-se, de maneira mais ampla, da inaptidão de todo recurso pedagógico para servir ao propósito de abolir a ordem que ele mesmo exige e que o constitui. A homossexualidade e as outras formas distinguidas de sexualidades periféricas nascem da especificação de indivíduos que acompanha o soerguimento da ordem que encontra na pedagogia e nos expedientes médicos um do mais destacados meios de controle. A multiplicação do discurso em torno de diferenças que são tributárias dessa ordem não logrará reverter ou desfazê-la. A especificação é parte do saber e meio pelo qual ele se exerce enquanto poder. A educação sexual, de qualquer tipo, não reprime, ela apenas dispõe as práticas no lugar em que elas possam ser melhor fiscalizadas, vigiadas.
Sem dúvida, é preciso reconhecer como legítimo o propósito de buscar defesas discursivas contra o assalto manifesto na erupção de discursos homofóbicos, intolerantes, representados especialmente na voz de sacerdotes e seguidores das igrejas pentecostais e variantes. Discursos que pretendem combater dados assustadores sobre a homofobia. Mas é preciso considerar se a pedagogia é o mais apropriado instrumento nessa luta, ou pelo menos, uma ação direta como a que está proposta no kit anti-homofobia. Se a ideia que move a proposta do kit é a de evitar as práticas violentas que se dirigem aos homossexuais, ela não pode realizar-se reforçando as ferramentas que ajudaram a perpetuar as categorias contra as quais se dirigem. É preciso lembrar que a discriminação começa com o gesto de aparência banal que recorta a identidade do que antes era indistinto — Foucault enfatiza esse aspecto. Não que antes as diferenças não fossem notadas e que não inspirasse práticas condenáveis, mas decerto não estavam amparadas na solidez de uma plataforma constituída por saberes dos mais diversos gêneros. A multiplicidade dos saberes que correspondem à rede implacável de controle e fiscalização que incita o discurso sobre o sexo e a sexualidade repousa sobre o simples movimento de classificação, o ato que separa e classifica.
Um discurso eficientemente constituído para anular a força e o apelo da homofobia (como expresssão de uma das muitas formas de discriminação) deve recusar essa tentação de afirmar a diferença, de afirmar o gesto inicial de classificação e discriminação; deve ter um apelo ainda mais fundamental, como um discurso de cidadania, um texto que se enraize ainda mais fundo, que supra as carências e referências que hoje se nutrem dos bálsamos infantis oferecidos pelas Igrejas a cada esquina. Só quando a camada elementar das nossas referências humanas for constituída por princípios de cidadania — e não por certos dogmas religiosos — as ações e práticas civis (mesmo de crédulos e religiosos) estarão conforme ao respeito que todo ser humano merece, malgrado as diferenças que poderíamos, mas não devemos, apontar. A “diferença”, essa categoria sagrada, deve sempre se conserva assim, abstrata. Devemos resistir ao impulso de transformá-la numa ordem de diferenças, à tentação de identificá-las, discriminá-las, pois é nesse gesto trivial que se amparam as espirais de poder e prazer que perpetuam esta dupla incitação: o prazer em exercer o poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, e o prazer em escapar ao poder, de enganá-lo, fugir dele.
A pedagogia pode ser uma aliada nessa luta, mas apenas se ela nos ensinar, não a notar as diferenças, mas a torná-las (sob certo ponto de vista) insignificantes, indiferentes, irrelevantes. Eis o sentido de se conservar a diferença apenas abstratamente.