Caso USP: competência não tem a ver com titulação

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O nível dos comentários dos que se opõem às premissas e ao movimento organizado pelos estudantes da USP está bem representado na acusação dirigida a Marcelo Rubens Paiva: “Além de maconheiro, você deve ser viado”. Mas há formas mais elaboradas que partilham do mesmo equívoco central e inaceitável de fazer todo o imbróglio girar em torno da prisão inicial dos três estudantes.

A professora Janaina Conceição Paschoal, advogada, professora livre-docente de direito penal na Universidade de São Paulo e ex-presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes de São Paulo, começa assim seu surpreendente texto sobre o episódio:

Os mesmos alunos que se dizem preocupados com a igualdade pleiteiam, apenas para si, o direito de fumar maconha sem que sejam importunados. Não cabe, nesta oportunidade, discutir o mérito de o porte de maconha para uso próprio ser crime; cumpre, entretanto, refletir sobre a pretensão de receber tratamento privilegiado relativamente àquele dispensado ao jovem que se encontra fora dos muros da universidade.

Sinceramente, eu não terminei de ler o texto. O excesso de informação hoje disponível faz com que critérios sejam mais do que nunca necessários para determinar o que deve ou não ser lido e diante de tudo que é preciso ler à nossa formação e informação cotidiana, um artigo que se desenvolva a partir dessa premissa deve ser solenemente descartado. A professora expõe já no segundo parágrafo sua visão limitada de todo o acontecido e não faz mais do que emprestar sua autoridade à perpetuação de desinformações já bem consolidadas pelo trabalho sistemático da grande imprensa. E a edição do jornal (se é que a edição do post no qual eu li seu texto coincide com a fonte original) ressalta ainda outros vícios surpreendentes para alguém que se encontra numa função tão destacada:

A população paga para que os estudantes da USP se tornem profissionais competentes, e não para que façam greve ou depredem patrimônio público 

Tratar as coisas em termos de “a população paga” por si só já mereceria um comentário, pois diz muito sobre a perspectiva com a qual a professora enfrenta os fatos, mas eu prefiro apontar a concepção de Universidade encarnada nessa relação instrumental pagamento-resultado. A população paga e o resultado deveria ser prossionais (leiam-se técnicos) compenentes. E a educação básica e secundária é financiada com que propósito, pra quê? Pra que os jovens se tornem aptos a ingressar nessas mesmas Universidades e assim se tornem professionais compenentes. Vê-se que toda riqueza da vida política está omitida nessa simples exposição instrumental da serventia da Universidade e na aplicação do dinheiro público.

Agora, para contrapor, vejam o texto de Paulo Arantes, professor de Filosofia na USP, Marcus Orione Gonçalves Correia, livre-docente e professor de direito previdenciário da Faculdade de Direito da USP e Jorge Luiza Souto Maior, professor associado da Faculdade de Direito da USP. Vejam o que está dito já no primeiro parágrafo:

Todos concordam que, no Estado de Direito, ninguém está acima da lei. Com base nessa premissa, não é possível conceber-se espaços isentos do controle de legalidade estatal. Por que, então, se essa é uma premissa razoável, defender que a Polícia Militar não possa fincar raízes na USP para o controle da legalidade?

Ao assumir como ponto pacífico justo aquilo que a professora representava como o objeto de contestação dos alunos: a ideia de que não há espaços isentos de controle legal, os professores mostram que a questão não está centrada nesse ponto, mas na resposta à pergunta formulada acima, resposta essa que, ao contrário do que pensa a professora, não é uma tentativa de criar espaços isentos de controle, mas de justificar a rejeição à presença da PM, rejeição que apenas se materializou em forma de ação a partir de uma caso particular envolvendo drogas. Qualquer pessoa que circule na USP e particularmente em FFLCH sabe da rejeição patente à presença da PM nos campi — e manifesta na posição (voto) do DCE quanto ao convênio USP-PM.

Inclusive, pode-se perfeitamente censurar a postura dos três estudante e ainda sim ser contra a repressão policial representada pela PM, ou seja, pode-se defender o “recato” no uso da maconha, como fez FHC, e criticar a repressão. Censurá-los não implica defender a presença da PM no campus. Reconhecer o erro que resultou na ocupação da reitoria não implica defender a presença da PM no campus. São distinções finas, mas não o bastante para não serem notadas por pessoas bem classificadas e reconhecidas em profissões que lidam diariamente com palavras e conceitos. Em algum momento da cadeia formativa nossos tributos não foram suficientes para obter os resultados esperados — o que só depõe em favor do meu argumento (não desenvolvido).

Atualização 1: Ainda usando o texto do Marcelo Paiva, convém sublinhar:

O DCE da USP entregou à reitoria meses atrás a sua proposta para conter a violência: iluminar o campus, descatracalizá-lo, tornar a Universidade aberta e  criar uma guarda universitária focada nos direitos humanos. E reitoria desprezou. Preferiu chamar a força de repressão que fez de São Paulo uma das cidades mais violentas do mundo.

Mesmo contando um orçamento maior que o da maioria das capitais brasileiras. As medidas sugeridas pelo DCE tem muita a ver com a tentativa de abrir a Universidade à população e, sobretudo, se ligam a certas conhecidas estratégias urbanísticas para lidar com a questão da segurança, sem que seja preciso usar repressão. Tratamento privilegiado, né? Sei.

Atualização 2: Se lembrarmos, o próprio DCE-USP não achou a ocupação da reitoria uma tática adequada e no entanto condenou o procedimento das autoridades envolvidas.

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