Dois argumentos contra Belo Monte

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Para mim, de todas as críticas ao projeto dois pontos são decisivos. O primeiro nem mesmo toca o mérito das questões costumeiramente discutidas entre aqueles que o debatem. O segundo recua até premissas mais fundamentais, neutralizando boa parte das alegações trazidas em apoio antes mesmo que se ergam. A composição entre eles é o fundamento da minha objeção à construção de Belo Monte. Vamos então aos aspectos que devem ser notados:

A maneira como o governo tem conduzido o projeto

Há disenso e questões discutíveis envolvendo Belo Monte. Porém, mesmo os defensores da usina devem reconhecer algumas características na conduta do governo. As ações do executivo podem ser reduzidas a fatos, a uma descrição, anterior à controvérsia das interpretações. E parece que, ao sugerirmos um interpretação para esses fatos, estamos agora em terreno mais seguro cujo espaço de divergência se limita ao trivial, sem comprometer o todo.

Os contínuos processos que embargam a obra, exigindo o cumprimento das etapas e realização adequada das condições para emissão da licença, a pressão constante sobre os agentes ligados ao órgão licenciador, o Ibama, e até a retaliação às entidades que se posicionam contrariamente são fatos envolvendo o estudo, planejamento e execução do projeto. Aqui, quero menos relacionar e esgotar a lista dos indicativos do que representar e ilustrá-los. Se parece aceitável que o governo lute pelas suas ideias e projetos, devemos, no entanto, reconhecer limites, de outro modo nos vemos presas de um espírito pouco democrático, de uma disposição que se representa perfeitamente no mote maquiavélico: “os fins justificam os meios”.

O interesse de realizar o projeto não pode atropelar trâmites institucionais que são instrumentos do Estado para balizar as ações dos governos. Ao reduzir as etapas que antecedem a execução do projeto a mera condição de formalidades burocráticas o governo manifesta um lamentável pendor autocrático. Supõe-se que o estudo de impacto ambiental provenha informações bastantes para que o governo e a sociedade discutam a viabilidade da construção da hidroelétrica em função de custos e benefícios, vantagens e desvantagens. Se em termos práticos a sociedade civil não tem poder de vetar a disposição inicial à construção de Belo Monte, ou se o governo não admite a possibilidade de que as informações constrariem seus planos iniciais, duas consequências resultam daí: (1) o papel da sociedade torna-se meramente cênico, e assim dá cores democráticas à disposição autocrática mascarada pela verniz da burocracia, pelo cumprimento das etapas prescritas em lei (cumprimento geralmente reconhecido em instâncias judiciais, mediante bem sabidos pactos políticos entre os poderes); (2) as instituições, que deveriam resguardar o Estado dos impulsos do governo, garantindo uma certa formalidade, a despeito das ideias particulares de cada novo ocupante do executivo, são, por fim, instrumentalizadas de modo servir em seu benefício, sem que, no entanto, se constituia um vício formal. Cada vez que o judiciário autoriza o licenciamento ou o avanço a uma nova etapa da execução, contra todos os vícios e o açodamento próprio ao modo como o projeto tem sido conduzido, enfraquece o poder retentor das instituições e legitima práticas nocivas ao fortalecimento do Estado brasileiro.

Se o levantamento dos possíveis impactos socio-ambientais não pode, na prática, inviabilizar o projeto é porque ele foi reduzido a qualidade de mero papel, formulário a ser preenchido como convém para que se realize um intuito original que nunca fora efetivamente ameaçado. Se o governo não está disposto a ouvir, responder e dar consequência às razões apresentadas como objeções a Belo Monte é porque não lhe convém. E quando a conveniência substitui o espírito público e democrático, a razão aqui só pode ser chamada dissimular a imposição, o adialógico, ainda que tudo isso se apresenta nas formas brandas de um acordo entre as partes que deveriam ser responsáveis pela guarda na ordem institucional.

Precisamos de energia? Quanto? Pra quê?

Belo Monte é conduzida sob a sombra da nossa recente crise energética. A ameaça de um novo apagão é perigo cuidadosamente brandido pelas autoridades. Ora, mas antes de entrar no mérito das vantagens ou desvantagens da hidroelétrica parece fundamental responder a outras questões de base. Belo Monte terá capacidade produtiva média de 4.571MW (com capacidade máxima instalada de 11.233MW no ano) num parque energético com capacidade instalada de cerca de 100-105 MWN (claro, excluindo a energia importada). Assim, Belo Monte representa de 5 a 10% do total da nossa capacidade produtiva. É certo que afirmar a necessidade de energia é um truísmo para um país em desenvolvimento, mas a questão é: quanto nos precisamos? Pra quê?

Reféns da chantagem energética, podemos bem passar sem responder essa pergunta, ignorando fatores fundamentais ao direcionamento do futuro do país. A cega necessidade de evitar uma nova crise pode nos fazer comprar um padrão de consumo energético, sem que atentemos para as questões que são postas ao fundo desse regime de produção e consumo: que modelo de desenvolvimento nós estamos comprando ao aceitar a construção da usina? Talvez esse seja um dos maiores méritos do belo texto que Idelber Avelar escreveu avaliando aspectos da gestão de Dilma nesse ano. Uma das coisas que ele diz é: talvez seja preciso um pouco de “humildade” para que possamos escolher um tipo de desenvolvimento que não seja tão pujante quanto gostaríamos, porém, mais humano, mais feliz (contra o impulso arrogante de vestir a carapuça de Brasil potência).

Belo Monte é um pacote completo, escolhê-la não é só “evitar o perigo de futuros apagões” e endossar os sem números de efeitos (nefastos) de sua construção, mas também aceitar inadvertidamente um modelo de desenvolvimento que não conta inimigos e barreiras para atingir suas metas. Colonizados durante tanto tempo por interesses e forças predatórias (se é que já nos livramos de tais amarras), queremos reproduzir e multiplicar em nosso próprio solo as mesmas práticas que outrora pesaram sobre nós? Nós, talvez a pátria ambiental do planeta, vamos continuar a aceitar políticas que parecem opor desenvolvimento e ambientalismo? desenvolvimento e tratamento justo às pessoas, populações, comunidades menos favorecidas?

Essas questões são fundamentais e importantíssimas, mas retornemos ao ponto desse tópico: para além do medo instigado, de quanto efetivamente nós precisamos? Essa pergunta, que vem embutida numa série de outras, eu deixo que o professor Oswaldo Sevá responda, adiantando que trata-se justamente de criar um contexto que solicite a necessidade da usina. Ou seja, garantir ou desejar a sustentabilidade energética do país não implica necessariamente aceitar Belo Monte, o maniqueísmo e a simplificação interessam a quem pretende dissimular aspectos fundamentais sobre os quais o debate se apoia e especialmente suas consequências. O vídeo é imperdível.

Imperdível também é o livro Tenotã-Mõ (disponível gratuitamente), que agrega análises de especialistas nas mais variadas área sobre as consequências do barramento na bacia do Xingu.

Atualização: acho que esse link tem muita a ver com o que se está discutindo aqui: Porque a Justiça não consegue decidir sobre o caso de Belo Monte

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