As paixões são um ponto nevrálgico da cultura grega. Na impossibilidade de dominá-las, os estoicos professavam a apatia (lembremos da matriz comum de apatia e paixão, pathos). Não parece haver melhor resposta a estes componentes ubíquos do que uma cultivada indiferença aos seus encantos. O intuito de engendrar uma disposição capaz de solapar a força das paixões atesta o esforço para reduzir a níveis toleráveis os efeitos de um fator que mesmo Aristóteles reconhecera como inescapável: o acaso. A resposta estoica é assim a tentativa de restituir pela via negativa um domínio que não poderia ser exercido de forma direta — se eu não posso controlar as paixões, posso reduzir a influência que elas tem sobre mim.
A submersão no universo do consumo anestesia os dilemas gregos. As paixões e os desejos que inspiram desde cedo são agenciados. Não é preciso temer o fracasso, pois o sucesso é possível. O mais distante sonho é vendido no mundo capitalista como uma promessa ao alcance das mãos (promesse du bonheur), em alguma prateleira do mercado simbólico que faz girar a engrenagem. E o acaso, componente inescapável da vida, capaz de tornar infeliz mesmo o mais virtuoso dos homens, desaparece como num passe de mágica. O acaso — como o absurdo — precisa ser mascarado, maquiado e devolvido ao sistema em cores mais discretas, do contrário, faz ruir um edifício inteiramente projetado para não deixar que o ar externo penetre.
Se fosse possível desplugar os desejos do complexo sistema que os organiza talvez pudéssemos experimentar o temor que inspirou as soluções estoicas e mesmo vivenciar com maior honestidade nossas relações com os Outros. Mas daqui de dentro tudo é possível, basta acreditar. E assim, domesticados, seguimos bovinamente desejando, sem que o fantasma do acaso possa comprometer a estabilidade (e porque não, a felicidade) imprescindível à manutenção (ou conservação) de qualquer ordem.
PS. Nós estamos completamente despreparados para viver a experiência do acaso e o consumo é a chave para entender essa condição, pois o desejo já não é mais espontâneo, tampouco irrealizável. O nascimento e a obsolência do desejo no mundo capitalista seguem cronogramas predefinidos. Não é de espantar que tanta angustia conviva com a urgência dos nossos consumos — é o acaso (e o absurdo que lhe segue) espreitando, infiltrando-se pelas fendas e brechas nas paredes do sentido.