Aqueles que hoje exigem incondicionalmente o voto em Dilma são os mesmos que antes pediam silêncio aos simpatizantes do PT sempre que estes expunham publicamente alguma crítica ao partido. O que parece pressuposto nessa interdição completa da crítica é um mecanismo interno de aperfeiçoamento que permita absorver e discutir tais críticas democraticamente. Como se a construção do partido — de suas diretrizes e linhas de orientação — fossem o resultado democrático dessa discussão interna. Não é.
É claro que o PT (ainda, e só ainda) tem grupos e ideais políticos heterogêneos incluídos no bojo de sua composição, mas é ingenuidade, para dizer o mínimo, supor que qualquer discussão de base pode afetar as linhas gerais que determinam a política (ou a realpolitik) do governo federal, por exemplo. Tudo isso é um imenso simulacro. A promessa da democracia — representada nas microdiscussões internas, onde teoricamente o simpatizante pode expor suas críticas sem medo de alimentar o terrível fantasma do retorno do PSDB — paralisa a crítica e justifica a incondicionalidade das exigências. Se na prática não há espaço para divergência e toda mudança é apenas produto de vontades autocentradas, o sujeito que está na base, lutando, por exemplo, para que o PT assuma compromissos de defender os povos tradicionais (ou de aprofundar políticas de direitos LGBT), é apenas uma marionete que importa apenas porque, em certa ocasião, seu voto pode ser determinante para deter o retorno do PSDB. É somente essa a sua função. Se não fosse por isso, ele seria ainda mais ignorado (se isso é possível). Mas como às vezes o partido precisa dele, surgem imagens como essa:
O medo, componente principal da estratégia petista, é paralisante e reativo. Tudo que ele produz é uma reação ao objeto do medo. Sua mobilização é totalitária e não deixa espaço para qualquer atitude positiva. É reativo também no sentido nietzscheano: a própria identidade que se forma a partir daí é negativa, não sejamos lobos. Não há um esforço para construir a identidade do que é ser ovelha, a própria identidade se constitui como atitude reativa (como negação do ser-lobo). O Não, aqui, é mais importante do que o Sim. O medo de perder o poder para o PSDB paralisou e asfixiou qualquer projeto de aperfeiçoar o partido, de discuti-lo, de melhorá-lo, de assimilar aquilo que outrora a sua imensa base social podia oferecer. E são poucos os que enxergam esse efeito paralisante do medo — mesmo entre aqueles que sempre me pareceram inteligentes. Talvez a melhor metáfora desse efeito paralisante esteja representada no filme V de vingança.
É claro que há milhares de referências reais que poderiam ilustrar a mesma questão, mas os filmes são sempre mais didáticos. O efeito do medo é mobilizador, mas seu preço é a rendição incondicional e a conformidade. No final das contas, não foi a aposta nesse apelo totalizante o que levou o PT a preferir disputar o segundo turno com Aécio e não com Marina? Pareciam confiantes de que todos, uma vez mais, optariam por render suas críticas desatendidas, relegadas a condição de ingenuidade irrealizáveis e irrealistas, ao apelo pragmático da contenção do medo. Agora, a confiança parece abalada e a torto e a direito pululam críticas e mesmo xingamentos aos que não cederam ao medo.
De minha parte, acho que é preciso coragem para não ceder o medo. Para acreditar em vias positivas e propositivas de luta política (ainda que elas não possam no curto prazo passar mais pela via institucional e partidária). Creio que é um imenso equívoco utilizar as coisas boas do governo Dilma (que existem, sem dúvida) — ou do PT, de modo geral — para justificar o silenciamento de críticas que não tem acolhida e para, por fim, endossar uma política autocrática, centralizada e isolada em suas próprias certezas, quer pela convicção que manifestam nelas próprias, quer pela crença de que, em algum ponto distante no futuro, ainda que não existam condições para isso, as críticas silenciadas em nome do medo serão absorvidas. Freud nos ensinou que se você está preparado para aceitar incondicionalmente qualquer coisa, no final das contas, você pode jogar fora todo o imenso aparato justificativo utilizado para racionalizar sua rendição. Se você está disposto a sacrificar sua autonomia em nome de um apoio incondicional ao PT — e ao medo que ele brande para exigi-lo —, você não precisa de nenhuma elaborada explicação, pois o medo é um sentimento que dispensa justificação. Mas se você quer preservar a capacidade democrática de participar da discussão sobre as ações políticas adotadas pelo governo, mesmo que num sentido distante e indireto, bem, talvez nesse caso convenha desconfiar da ditadura que desmobiliza tudo que não seja medo e receio.
Se não se admite crítica e, ao mesmo tempo, não se tem um claro limite do que se considera inaceitável, ou seja, sobre questões que, uma vez transgredidas, mudam nossa avaliação de alguma coisa, isso significa que a adesão ao que quer que seja é incondicional. Nesse caso, todas as explicações e justificativas são meras operações de compensação que visam ajustar os fatos, contingentes, a fatores que nós não aceitamos mudar, pois os enxergamos como necessários. É preciso aceitar quem não esteja tão convicto de suas próprias certezas orientadoras. Quem esteja disposto, diante de mudanças, não a ajustar os fatos para preservar intactas nossas certezas, mas a redefinir e discutir os próprios parâmetros que definem os fatos. Claro que isso implica insegurança, instabilidade, algum risco. Mas essa é a condição necessária de alguma mudança real, mudanças são quase sempre dolorosas e custosas. Você pode preferir acreditar e manter suas referências, mas ao menos permita que os outros sejam mais ousados, arriscados e corajosos. (E não esconda seu medo atrás de um suposto e controverso privilégio epistêmico acerca do que são os interesses dessa ou daquela classe; cada um sabe quais são seus interesses, embora sempre convenha embutir aí um grau de “alienação” que nos permite assumir para nós mesmos a função de legislar sobre os interesses e a representação dos outros).