O post também poderia se chamar o paradoxo dos especialistas. Em filosofia, os especialistas, pesquisadores especializados em autores e/ou temas em certos autores, são muito importantes. Eles acabam estabelecendo leituras, quase como doutrinas ou jurisprudências. E naturalmente o recurso à leitura de especialistas acaba virando um aspecto importante da própria pesquisa acadêmica.
Quando o recurso ao especialista é usado como um dos critério para avaliação de um trabalho filosófico (exégetico ou não) ele se transforma numa espécie de chancela que corrobora certas interpretações. Naturalmente, como há muitas perspectivas, há diferentes normas e critérios que se ajustam em linhas interpretativas. Tudo isso funciona de maneira a formar uma colcha de retalhos: a comunidade filosófica abriga uma série de linhas e o trabalho avaliado tem tanto mais força quanto mais ele é capaz de dar suporte à sua leitura não apenas por meio do autor estudado, mas também segundo as linhas disponíveis. Vejamos um caso em concreto. Através desse recurso seria possível avaliar — mesmo não sendo especialista numa certa fase do pensamento de um filósofo — se um trabalho sobre Capitalismo e Esquizofrenia, de Deleuze, é capaz de mobilizar apropriadamente a obra em questão, mas também as leituras disponíveis nas linhas de interpretação consolidadas. (O exemplo não é dos melhores, escolhi Deleuze para ter que citar Wittgenstein ou Heidegger). Porque, naturalmente, há linhas diferentes, de acordo com perspectivas e ênfases diferentes. Contudo, ênfases diferentes podem levar um filósofo de crítico mordaz do antisemitismo a mentor intelectual de políticas antisemitas, como todos sabem. Claro que este último exemplo é um caso extremado, mas a escolha foi deliberada. O caso foi escolhido para destacar um aspecto. Há, no entanto, diferenças em menor grau.
O problema é: argumentativamente, isso não raras vezes funciona como uma garantia que pretende justificar a inferência que nos leva da constatação de uma diferença interpretativa (com a qual não concordamos) à conclusão de que a interpretação carece de força. “Eu confio nos especialistas”. Mas há especialistas dizendo toda sorte de coisa. Confiar em consensos nem sempre é um bom argumento (embora em certos casos possa ser uma garantia suficiente). Portanto, a confiança ela mesma nem sempre substitui o argumento do especialista. E então surge o paradoxo às vezes comum. Quando usamos o confronto com uma bibliografia como critério, inevitável e até inconscientemente nós selecionamos uma leitura e a aceitamos como padrão. Se você usa uma certa leitura como critério, como padrão, obviamente economiza tempo (racionaliza tempo) ao cobrir uma área mais extensa do que seu campo de atuação ou interesse acreditando que outros já o fizeram. Ou simplesmente acreditando nos outros. O problema da autoridade não é exatamente simples, sobretudo quando se considera certas discussões sugeridas nos debate sobre teoria da argumentação — e em especial se considerarmos o vínculo que (acredito eu) essas discussões tem com a lógica paraconsistente e sua aplicação (ou seja, com as discussões a respeito do que se pode fazer quando se enfrentam contradições). O caso é que da aplicação desse critério, se o aceitarmos como critério, só pode resultar, no melhor dos casos, em dissidências controladas, nunca rupturas completas. A confiança no especialista e nas suas ideias, consagradas ao longo do tempo, só pode gerar o efeito psicológico da desconfiança em que não é. Ou pelo menos em quem não é especialita tal como “o especialista” ou “os especialistas”. E esse é o caráter paralisante do que deveria ser um critério de seleção do melhor trabalho. Para o pensamento, há um perigoso componente de esterilidade quando o que era pra ser uma ferramenta auxiliar se converte num farol da atividade intelectual.
Curioso é que, creio, isso tem muito a ver com a desconfiança que alguns autores manifestaram contra a influência intelectual, autores como Nietzsche (contam, não sei) e Wittgenstein.
É inexequível dar conta de tudo que já foi dito sobre um autor. Mas a pretensão de dar conta de uma bibliografia que, nos tempos de hoje, cresce a uma velocidade assustadora, só pode ser um grande entrave à própria capacidade criativa de quem se propõe a refletir. A força reflexiva fica engessada pela necessidade de enfrentar leituras já estabelecidas. A necessidade de definir critérios de rigor (aceitação de leituras, procedimento, métodos consagrados) que nos torne capazes de estabelecer uma comunidade (como a ciência pretensamente tem, embora a ciência seja mais fragmentária do que supõem os que a veem de fora) na qual o diálogo seja facilitador do “desenvolvimento de respostas” (outro contrabando da ciência) acaba por sufocar o próprio ânimo do pensamento, que exige, sobretudo, liberdade. A ideia de método, tal como a ideia de ordem, nos enfeitiçou. Acho que é preciso quebrar esse encanto.
Toda comunidade (intelectual ou não) tem um pouco de clube. O recurso a especialistas é uma maneira dos outros membros da comunidade filosófica entenderem que o sujeito deu conta de uma série de problemas que podem ser encontrados no texto de determinado filósofo. Mas ele supõe que os problemas e consequências implicadas pelo pensamento de um certo filósofo já estão estabelecidos. O mais difícil de ver é o que está sempre diante dos nossos olhos.