Preconceitos intelectuais

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Umberto Eco é respeitado o suficiente para nos oferecer um tipo de honestidade rara, a de confessar o papel dos livros não lidos no quadro de ideias dos intelectuais. Ler essa confissão é algo quase libertador, em especial para alguém que como eu se vê incapaz de devorar livros com a voracidade com que tantos o fazem, para quem passa de um livro a outro numa morosidade embaraçosa. Quando não simplesmente os abandona parcialmente lidos.

Acho que há também outra confissão catártica a fazer: devemos admitir os preconceitos intelectuais. Bem, a verdade é que talvez essa confissão seja só minha, não tenho pretensão de que ela seja um sintoma geral. Tampouco creio que se trata de uma questão moral. Preconceitos podem ter papel epistêmico, como já escrevi há muito tempo. Portanto, não acho que ter preconceitos intelectuais seja o sinal de qualquer tipo de característica repreensível. Antes, tê-los testemunha o papel que desempenha a opinião de amigos, professores, parentes, na organização das nossas ideias. Não raras vezes essas opiniões se cristalizam e passam a funcionar como um paradigma pelo qual regulamos e/ou avaliamos outras questões. Mas vejamos um caso particular para entender como isso funciona.

É inegável minha admiração por Freud — e pela psicanálise, consequentemente. Mas devo confessar que sempre tive um preconceito quase osmoticamente adquirido por Lacan. (Também poderia incluir aí Jung, mas vamos nos ater a Lacan). É bem verdade que a escrita de Lacan não favorece, especialmente se comparada ao brilho sem par da prosa freudiana. Mas é verdade também que uma certa má vontade atuava sobre minhas ações. No entanto, uma série de circunstâncias me levaram a relativizar (maledictum) meu preconceito. Influências (novas) de toda sorte. Por exemplo, ao me deparar com a análise de Safatle sobre relação estabelecida por Lacan entre o sujeito cartesiano e o sujeito do inconsciente — análise que mobiliza até os argumentos analíticos de Hintikka como instrumento — tornou-se difícil recusar o interesse pelo tema mediante um simples preconceito. E o problema do preconceito é esse: ele é dogmático e não argumentativo. Safatle estudou Lacan no Mestrado e no Doutorado. No Mestrado, foi orientado por Bento Prado Junior, uma figura que não inspira senão respeito. Difícil manter uma dogmática recusa de Lacan neste cenário.

As novas influências sem dúvida dissiparam meu preconceito contra Lacan, mas essa confissão importa justamente por seu carácter profilático. Quer dizer, parece necessária uma reavaliação sistemática dos nossos “valores intelectuais” a fim de evitar que preconceitos enraizados e quase desconhecidos nos impeçam de desfrutar autores que talvez sejam capazes de oferecer muito mais do que supúnhamos. Mesmo que ao final encontremos diferenças radicais, o diálogo com essas diferenças pode ter papel determinante e insubstituível. Desfazer-me de preconceitos sincera e honestamente assimilados tem me feito um enorme bem intelectual. E antes disso eu nem havia me dado conta de que minhas relações com certos autores e certas ideias eram essas: puro preconceito.

PS. A construção do pensamento lacaniano se dá não sem diálogos interessantíssimos com figuras como Meyerson e o próprio Heidegger. Sua ênfase na desmedicalização interessa qualquer um que se sinta atraído pela historicidade e normatividade das categorias médicas com as quais a experiência da saúde mental tem sido manejadas. Sobretudo se podemos adivinhar os efeitos políticos e sociais da observância estrita dessas categorias patológicas.

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