Mestiçagem como política pós-nacional e pós-capitalista
Na Europa foi inventado o elitismo eugenista, a aristocracia eugenista. Melhores são os iguais, preferencialmente os arianos, a raça superior. Os negros são animais, macacos, primitivos, selvagens, e coisa parecida pensavam também os eugenistas de outras raças e etnias. Eu, que não sou europeu e não me deixo encantar por essa filosofia barata, acho que nós inventamos um tesouro no Brasil como resposta prática a esse pensamento, um tesouro que não vale nada. — Como é possível existir tal coisa, um tesouro sem valor? Para isto basta que predominem pessoas que valorizem coisas diferentes e que não sejamos capazes de estimular o gosto por esse valor.
O Brasil não inventou a mestiçagem, a mestiçagem existe na raça humana desde sempre — mas o Brasil mencionado infinitas vezes por Ariano Suassuna (que por sua vez lembrava de Machado de Assis ao falar do Brasil Real), o Brasil de Aldir Blanc (por oposição ao Brazil), inventou uma cultura da mestiçagem muito mais potente e vital do que o ódio racial que ainda circula por aí.

A esquerda nos recorda dia e noite da força do ódio, que se manifesta na violência e injustiça corriqueiras na vida dos brasileiros, como, por exemplo, na chacina cometida Cláudio Castro em nome da guerra às drogas. O que a esquerda faz então é nos lembrar de um sentido de revolta e de urgência indispensáveis na luta política, pois há séculos o racismo é uma questão de vida ou morte para pessoas negras e mestiças no país. Essa lembrança e a combatividade que a acompanha eram a força de Marielle, por exemplo, do seu discurso e da sua presença. Eu não quero nunca estar longe dessas pessoas da esquerda comprometidas em denunciar e proteger os outros do ódio e da raiva que marcam a sociedade brasileira com as cores vermelhas do sangue. No entanto, cá do meu cantinho privilegiado e distante, eu creio que o único antídoto à torrente de ódio fascista e eugenista consiste naquilo que eu chamo abstratamente de cultura da mestiçagem.
A cultura da mestiçagem é fundamentalmente uma ética da mestiçagem, um modo de ser e estar juntos. E é uma alternativa à civilização ocidental, liberal e capitalista, na medida que se funda num ethos distinto a respeito da diferença. A celebrada pluralidade liberal é inegavelmente interessante, mas os seus praticantes não necessariamente se misturam, eles celebram a diversidade e a pluralidade como quem vai a um museu, pois uma boa parte deles não chega nunca a querer ser diferente, a querer mudar a si mesmo. Daí que a inclusividade entre eles é sempre um lema publicitário, a luta política é muito publicitária nos EUA e em todo o mundo, pois esse é o sentido do ativismo. E às vezes essa ode à diversidade ganha contornos caricatos e estereotipados, como os brancos apresentados no filme “Get out”.
A “inclusividade” que pode existir numa cultura da mestiçagem é outra coisa. A civilização que pode existir tendo isso como base é de outro nível. Ortega y Gasset dizia: “A civilização é, antes de mais nada, a vontade de convivência, a barbárie é a tendência à dissociação”. Nossa vontade de conviver e de se misturar é sem igual, e o que criamos na urgência de nos encontrar é simplesmente demais! E eu queria poder falar sobre isso com a mesma qualidade com que João Ubaldo falou sobre isso ao criar a Casa da Farinha, mas me falta a competência.
Já vou longe no texto sem sequer ter mencionado o que me motivou a escrevê-lo, Kokoroko, a banda de uma galera incrível de Londres. O som deles é fabuloso, alegre, e eles são demais, lindas expressões da mestiçagem, na música e na cara. E vendo todos eles, lindos e vitais, cantando músicas como Together we are, do novo disco “Tuff time never last”, eu lembrei de uma das fotos que mais amo na vida, e que volta e meia eu celebro, uma foto com bons amigos e amigas que não por acaso são também músicos (bem, parte deles).

Eu demorei muito a me familiarizar com toda a discussão racial e étnica, com a sua dimensão histórica e política. Em certo sentido, eu só me aproximei desse campo de questões depois que sai do Brasil, faz relativamente pouco tempo, depois de 2013. Mas antes mesmo eu intuía coisas que depois eu comecei a entender conceitualmente, historicamente, de forma retrospectiva. Assim, o significado que tardiamente atribui ao afeto que eu sentia por essa foto era o seguinte: nós éramos lindos, nossos cabelos, nossa bocas, a cor da nossa pele, e diversos, uma mistura. A beleza da mestiçagem é difícil de se fazer enxergar mesmo para os mestiços, constantemente submetidos a padrões que não contemplam os seus próprios. E se torna difícil ver a própria beleza. Spike Lee fala da dificuldade e da necessidade de enxergar com lentes alternativas em BlacKkKlansman — aliás, toda a ideia por trás do “Young, gifted and black” de Aretha Franklin, ou do movimento Back is beautiful tem a ver com a tentativa de estabelecer padrões e valores alternativos aos padrões estabelecidos pelos colonizadores, e internalizado pelos colonizados contra si. E eu nunca sequer imaginei que minha visão de mim mesmo pudesse ter sido afetada por isso, porque nunca me identifiquei com nenhum rótulo racial, nunca tive uma identidade.
Hoje em dia eu me sinto mestiço e gosto dessa identidade, mas não como a identidade dos identitaristas, o que me interessa na mestiçagem é precisamente o que ela tem de desestabilizador. A mestiçagem não está comprometida com a unidade, como a pureza que buscavam os eugenistas, ela é anti-pureza!, e por meio dela só podemos chegar a uma unidade mediante a completa absorção de todos os diversos que a compõe. A mestiçagem é a busca da absorção, ela quer tornar o outro parte de nós mesmos. Mais uma vez: a mestiçagem é um modelo de convivência, é a única forma de inclusividade que realmente funciona, porque não é uma normalização, mas uma naturalização, aperfeiçoada espontaneamente pela cultura brasileira.
Digo e repito um milhão de vezes: a cultura da mestiçagem é parte fundamental da ética necessária a um mundo globalizado, uma ética cosmopolítica, pós-nacional e pós-capitalista. Uma riqueza e um tesouro ocultos a olho nu.
