Arqueologia de psicologias e formas de vidas não-capitalistas
Há letras que são simplesmente incríveis, pelo teor que elas carregam, pela simplicidade com que dizem o que dizem. Eu só comecei a prestar atenção seriamente às composições do cancioneiro da América Latina em espanhol com Caetano Veloso, com a pérola que é Fina Estampa, e seu trabalho de curadoria. Naturalmente, antes disso eu já conhecia muita gente boa: Violeta Parra, a Negra Sosa, Victor Jara, Silvio Rodriguez, Buena Vista, Astor Piazzolla; meu querido amigo Pedro Dantas me deu de presente o gosto por Juan Luis Guerra e Luis Miguel. Eu conhecia muita gente, mas não pensava em termos de capacidade criativa, não me concentrava na questão da criação e composição das letras. E isso mudou com Fina Estampa.
Daí que agora eu olho retrospectivamente para as coisas que eu gostava, e escuto Los Hermanos, de Atahualpa Yupanqui e na voz de Elis Regina, com os olhos marejados, que coisa mais linda! É um hino comunista, e fala desse sentimento entre seres humanos que quem ainda pode reconhecer? É quase um fóssil, uma relíquia arqueológica que preserva algo tão distante da nossa sociedade capitalista, uma peça de uma forma de vida extinta, ou quase, a forma de vida comunista (as pessoas não pensam nem sentem assim hoje). A canção apresenta a psicologia de pessoas que ainda pensam como comunistas, seu modo de ver tudo, amor e amizade, política, relações humanas em sociedade, é como estar em Anarres de Ursula Le Guin. Eu não tenho a menor condição de escrever sobre Los Hermanos, então isso é tudo que tenho para dizer no momento.
Mas sobre Sabor a mí eu preciso escrever. E preciso cometer o pecado de tentar explicar a letra. Nada mais vulgar do que a necessidade de explicar. Permitam que eu cometa essa vulgaridade com a triste esperança racionalista de que as palavras aumentem o número de pessoas afetadas pela beleza que essa canção carrega. Essa esperança é também uma expectativa comunista que eu levo em mim com orgulho quase presunçoso, a esperança de que a beleza (e não apenas a riqueza econômica) também seja distribuída e redistribuída entre os seres humanos.
A letra começa num tom nostálgico, de quem (re)lembra algo que já não é mais presente. Uma lembrança com algum pesar, mas sem tristeza. E a constatação orgulhosa de que daquela conexão algo ficou (de tudo fica um pouco): um sabor mutuamente gravado em suas almas:
Tanto tiempo disfrutamos de este amor
Nuestras almas se acercaron tanto así
Que yo guardo tu sabor
Pero tú llevas también sabor a mí
Álvaro Carrillo, compositor dessa preciosidade, decide fazer uma prova ontológica do amor, mostrar que o amor é coisa do corpo, como eu sempre digo, e assim encena a possibilidade de que seja falso o que ele diz. Ele diz, “se você negasse essa marca que eu deixei na sua alma, o que poderia mostrar que você está enganada, que essa marca ainda existe como coisa indelével?”
Si negaras mi presencia en tu vivir
Bastaría con abrazarte y conversar
Tanta vida yo te di
Que por fuerza tienes ya sabor a mí
Um abraço e uma conversa, body and soul. Um simples abraço é capaz de provar o amor, de reconstituir conexões, soterrar abismos, apagar distâncias. Um simples abraço, pois as coisas são simples quando sabemos que o amor é coisa do corpo, embora suas marcas fiquem na alma. O amor deixa marcas, e que o compositor fale dessas marcas usando o conceito de sabor é o que torna a letra inesquecível. Que uma marca na alma seja registrada no símbolo e na palavra como sabor, gosto, isso que sentimos pela boca, é uma mostra de beleza e de capacidade criativa, e ela tem por certo uma força erótica, quase obscena de tão apaixonante. Mas o mais bonito vem a seguir. E aqui eu constato com surpresa que essa letra, como a de Los Hermanos, também registra vestígios de uma psicologia comunista, uma ideia de amor comunista.
O discurso inicial, saudoso, mas não triste, era simplesmente o discurso de alguém que não era o dono de outra pessoa, nem queria ser. Parece natural querer possuir o que nós amamos, quem nos faz bem, mas nos conta Álvaro Carrillo, que o máximo que deveríamos aspirar é dar às pessoas que amamos o nosso sabor, e esperar ter também o sabor delas. Nada menos que uma renúncia à propriedade, à posse, à pretensão de ser dono de quem amamos. E mesmo assim, na condição de despossuído, de pobre, ter ainda o que oferecer, aquilo que há de bom na nossa vida. Amar é, mesmo para quem é pobre, ter algo de bom que oferecer a quem se ama. Celine Song seguramente concordaria com esse modo de pensar o amor como um non materialist asset.
No pretendo ser tu dueño
No soy nada, yo no tengo vanidad
De mi vida, doy lo bueno
Soy tan pobre, ¿qué otra cosa puedo dar?
Eu sou profundamente afetado por esse modo de apresentar alguém sem dinheiro nem posses como alguém ainda assim capaz de oferecer algo profundamente valioso a outra pessoa.
A letra termina reafirmando a marca do amor, como um sabor que nem o tempo pode apagar. É uma canção profundamente romântica sem ser capitalista, o que me parece incrível; ela de saída rechaça o conceito de posse/propriedade e mesmo o de riqueza. É quase uma máquina do tempo, ou um aparato que nos leva para outro lugar, outro mundo e podemos contemplar assim um mundo diferente. É verdadeiramente como o livro de Ursula Le Guin.
Pasarán más de mil años, muchos de más
Yo no sé si tenga amor la eternidad
Pero allá, tal como aquí
En la boca llevarás sabor a mí
Esse carinho que a letra apresenta com um bem não-material que damos a quem se ama me lembra o patrimônio não-material do Nordeste, da Bahia, de Salvador: o carinho. Essa coisa que nós quase esquecemos, a que não prestamos atenção porque não é material, não é dinheiro, o único bem da sociedade ocidental capitalista e liberal. Quero muito escrever sobre esse tema, o carinho no Nordeste, em Salvador. Por enquanto espero ter conseguido “explicar” essa preciosidade que Luis Miguel, como Caetano Veloso em Fina Estampa, resgatou para o nosso deleite.
PS. Li um livro que estou lendo a seguinte frase: “Não existe amor, só provas de amor”