A ubíqua ilusão do debate

A

Sobre a melancólica aceitação do marco teório e prático dos liberais pela esquerda

Há poucas semanas Jones Manoel debateu com Fernando Holiday num desses mil podcasts que agora existem no Brasil. Jones é um leninista, e por isso suponho que de aspiração revolucionária, portanto, não é exatamente um reformista. O que faz um adepto da esquerda revolucionária num podcast, discutindo com uma besta quadrada como Fernando Holiday? Não quero dizer o que Jones Manoel precisa fazer, mas é sintomático que a esquerda esteja lutando as guerras culturais como se tivesse algo a ganhar.

Recentemente saiu uma matéria na Folha dizendo o que todo mundo sabe, que a direita manda na internet e que a esquerda só tem poucas figuras, que tem pouco impacto na rede. Jones Manoel é uma das poucas exceções, e tem se fortalecido nas últimas semanas. Eu acompanho bons comunicadores de esquerda, no Twitter e no Youtube, mas não me iludo sobre o impacto que eles podem ter. Pra explicar minha posição eu preciso explicar resumidamente pelo menos duas coisas bem complicadas: 1) minha posição sobre publicidade, verdade e política, e 2) minha perspectiva sobre racionalidade e argumentação (debate).

Publicidade, verdade e política

Faz muito tempo eu quero registrar aqui uma crítica aos fact checkers. Fact checkers são o maior indicativo de que a esquerda e os liberais ainda não entenderam nada da post-truth. Diante do impacto bombástico da falsidade, as pessoas que verificam aquilo que é verdadeiro denunciam o falso, reafirmando a verdade como se as pessoas no mundo estivessem interessadas em saber a verdade. É uma estratégia política e intelectual: afirmar a verdade contra o caráter danoso do falso. Eu não tenho nada contra afirmar o verdadeiro, meu problema está em acreditar na premissa de que as pessoas estão interessadas na verdade. Essa premissa é no mínimo ingênua, no máximo estúpida. (Além do que, afirmar o verdadeiro não significa subtrair importância daquilo que não é verdadeiro, do fictício)

A desconcertante honestidade Joselito de Olavão (ato falho?)

A extrema-direita já parte da ideia de que as pessoas querem ser enganadas, e eles enganam sem pudor. (Se eu fosse realista, diria: “é uma perspectiva muito mais realista!”) A extrema-direita entrou na pós-modernidade antes da esquerda. Ninguém pode vencer a extrema-direita enquanto esse for o jogo que estamos jogando, pelo simples fato de que enganar uma pessoa é muito mais fácil do que instruí-la. Para instruir e educar alguém é preciso que essa pessoa aceite estar na posição de aluno, de quem não sabe, de quem ignora e precisa conhecer, são atitudes que requerem certa segurança em si e em sua própria inteligência, não é coisa para quem lê O minimo que você precisa saber para não ser um idiota. (Preciso urgentemente escrever por aqui sobre La rebelión de las masas, de Ortega y Gasset). Os leitores de Olavo de Carvalho têm, ironicamente, sérias dúvidas sobre a sua própria inteligência, mas acham que o único que importa mesmo é como os outros os percebem, de tal maneira que talvez consigam mascarar o óbvio lendo o livro de Olavão. O Brasil é um dos países mais hipócritas do mundo porque lá tudo se resolve no campo do mero parecer e não do ser.

Numa cultura onde a verdade não interessa, fact checkers são uma piada. As pessoas querem confirmar o que elas pensam, aquilo que elas acreditam saber, e por isso a extrema-direita tem uma atenção fina às massas, atenção que a esquerda já não tem e mesmo que tivesse, não saberia o que fazer com o que conseguiu captar. Quando as pessoas já não estão interessadas na verdade, querem apenas confirmar o que já pensam e por isso caem nas estratégias pedestres de pessoas francamente estúpidas, como a gente pode criar nelas um interesse pela verdade? Só uma completa reforma da educação poderia nos ajudar aqui, uma reinvenção do modo como lidamos com a verdade, e isso não significa forjar mais divulgadores científicos e inundar o Youtube com eles. Em certo sentido, precisaríamos de uma gaia ciência.

Eu não acho que devemos cruzar os braços, ou que nenhum debate é legítimo, não quero forçar nenhuma agenda ou plano de ação à esquerda, mas como alguém que pensa a partir da esquerda, a pergunta que volta sempre à minha cabeça parece com aquela de Ciro Gomes: “isso dá bilhão?” O que eu quero dizer é: se a gente fizer o esforço de incorporar um espírito leninista ou gramscista, será que dá pra ver nas possíveis vitórias que conseguimos no espaço da publicidade digital o caminho que nos levará a qualquer coisa de desejável em relação ao que quer a esquerda? Porque eu consigo pensar essas vitórias como importantes para deter o avanço da extrema-direita em algumas circunstâncias (vitórias eleitorais), mas pouco mais do que isso. Será que a esquerda ainda sabe o que quer?

Parece inquestionavelmente desejável ter mais figuras de esquerda no espaço público, e em todas as áreas de poder, mas é assim que virá nossa vitória? Venceremos lutando no campo da publicidade? Se não estamos ocupados pensando como podemos vencer, dadas tais condições nada vantajosas, tudo que faremos é jogar o jogo que temos jogado, esse em que a extrema-direita está em franca vantagem porque eles podem mentir e enganar, e nós não. Fact checkers não ajudam muito nessa luta, pode acreditar. Eu peço desculpas pelo excesso de termos como “vencer” e “vitória”, termos ligado à mentalidade liberal que me enojam, mas é que se as pessoas estão vendo o mundo e principalmente a política em termos de guerras culturais, é inevitável usar conceitos similares, ainda que seja para depois tentar livrar-se deles. Eu gosto de Lenin e de Gramsci, mas em política me interessa mais a espontaneidade que perspectivas deterministas e estratégicas.

Racionalidade e argumentação

Debate funciona muito bem quando você acredita em racionalismo e em universalidade, e quando você acha que tudo é uma questão de fato e, portanto, de verdade. E como a filosofia já não importa mais, pois foi reduzida à condição de trophy wife dessa galera que gosta de falar de cultura superior, as pessoas andam por aí explicando tudo e ensinando como tudo pode ser entendido sob a perspectiva da ciência. E as coisas não são bem assim.

Em nenhum sentido nós somos computadores, apesar da onipresente correlação entre nosso pensamento e a ideia de processamento. A lógica não pode ser o árbitro no conflito de opiniões, não existe uma dimensão universal que pode mediar nossos conflitos — as pessoas vivem em mundos diferentes, mesmo que os nossos muitos acordos mascarem essa incomensurabilidade invisível. A política no mundo pós-moderno tem uma complexidade irredutível a cálculos e a engenharias. Isso não significa que estejamos imunes a tratamentos maquinais (determinísticos), “somos máquina” (como nos lembra Robert Sapolsky num recente entrevista pra Folha) e podemos ser explorados por isso, e sabemos que somos explorados assim no ambiente digital desde o escândalo da Cambridge Analytics, no primeiro mandato de Donald Trump.

Somos máquinas, somos dados, mas somos também seres sensíveis e espirituais, parte do mundo da vida. A direita está em clara vantagem em tudo, porque só sabemos ver o mundo como máquina e engenharia, e o nosso aspecto maquinal pode e é constantemente explorado no marketing digital por gente que não tem o menor compromisso com a honestidade intelectual e com a inteligência dos outros. À esquerda caberia ser capaz de trabalhar com a parte não determinística de nossa constituição, aquela que não pode ser reduzida a nada, a parte espiritual. O que me lembra um precioso artigo de Vladimir Safatle em que, comentando a posição de Lula frente aos evangélicos no novo filme de Petra Costa, Safatle lembra que o socialismo queria ser uma religião, a religião depois da religião:

Na verdade, o socialismo nunca negou a religião. Como Prometeu, ele tomou da religião seu fogo e entregou aos humanos. Ele prometeu dar aos humanos a possibilidade de criar outros mundos. Na verdade, no sentido mais profundo, o socialismo queria ser a religião depois da religião. Essa era sua força.

Isso pode explicar porque teóricos como o italiano Mario Tronti afirmarão que o século 20 conheceu duas teologias políticas: uma que deu no fascismo e em todas as formas de revolução conservadora, como a que vemos no filme de Petra Costa, e outra que levou ao socialismo e às tentativas de alimentar a política com um desejo de realizar outro mundo aqui e agora.

Mas numa Tecnosfera, num mundo reduzido a fatos, é difícil que uma esquerda profundamente apegada à instituições tenha coragem de ir pra rua com um discurso e uma perspectiva espiritual sem se envergonhar.

Deixa eu tentar não desgarrar tanto a discussão da questão inicial sobre os debates em que a esquerda participa. O que queremos quando debatemos, quando nos expomos em debates para que um grande público veja? Queremos convencer, mudar sistemas de crenças e supomos que conseguiremos isso usando argumentos. É verdade que podemos afetar os outros e modificar sistemas de crença usando argumentos, mas não só isso. Se eu conseguisse transformar água em vinho, seguramente modificaria muitos sistemas de crença, não? A esquerda não precisa fazer milagres, mas ela não pode se limitar à visão de mundo liberal e a maneira como essa ideologia molda o modo como nós vemos o mundo, como nós atuamos nele e como nos afetamos uns aos outros.

Nesse mundo da ciência, racionalista e determinista, a estética deixa de ter um papel, a ética deixa de ter um papel. Uma ciência profundamente despolitizada determina tudo. Não pode ser esse o caminho para onde a esquerda deveria olhar?

Ao invés de agir como se o mundo estivesse coalhado de gente disposta a reformar sua visão de mundo diante do melhor argumento, por que não acreditar na universalidade da beleza e tentar afetar as pessoas por meio dela? A estética já foi mais valorizada na esquerda. Afetar não como quem quer determinar, achar a causa eficiente, não como quem pensa o mundo como um mero conjunto de determinação materiais (materialistas). Afetar como quem quer provocar uma confluência.

Ninguém precisa acreditar nas minhas loucuras, mas eu ainda prefiro acreditar nelas do que ter fé (indireta e por tabela) nas crenças liberais sobre racionalidade, argumentação e debate. Isso é muito pouco para um pensamento tão fecundo e criativo quanto o pensamento da esquerda, isso é muito pouco para o que nós precisamos ante ao desafio da extrema-direita no mundo.

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