Rumo ao explícito

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Eu sou da controversa opinião de que falar sobre sexo não necessariamente empodera as mulheres, nem as torna mais livres. Não é como se a constante ocorrência do sexo nos discursos as fizesse pensar: “bem, agora que todos falam de sexo livremente eu também me sinto mais à vontade para falar de assuntos sobre os quais eu sempre quis falar, mas nunca me senti livre”, não acho que isso é o que acontece. O efeito dessa profusão de discursos sobre o sexo não é o de torná-lo um assunto normal e naturalizado para as mulheres, mas o de induzi-las a falar também sobre o sexo, mesmo que não queiram, e dessa forma nasce uma injunção a falar publicamente sobre o sexo e a sexualidade.

O discurso sobre o sexo passa então a ser mais uma exigência — com vantagens e desvantagens. Isso significa que as mulheres, de quem se exige que sejam bonitas e jovens (como bem representa o filme A substância), agora também precisam se preocupar em exibir um discurso (e uma prática) sobre o sexo segundo critérios públicos, critérios aos quais se sentem constrangidas a adequar-se, e não raras vezes a fingir adequação. O sexo tornou-se uma identidade, uma máscara que é preciso exibir para parecer cool (ou para não ser confundido com conservadores). A questão que se coloca então é a seguinte: como diferenciar o discurso livre sobre o sexo do discurso simplesmente fingido? Se consideramos que não existe fingimento e que todo o discurso sobre o sexo é expressão espontânea de liberdade, liberdade manifesta por mulheres empoderadas por ouvir o discurso de outras mulheres falando livremente sobre sexo, isso quer dizer que não entendemos o significado do sexo como identidade, isto é, que não admitimos a possibilidade de que ele seja performance feita para os outros.

“Pau menor” é, na certa, a versão politicamente correta do “pau pequeno”

Se o discurso público sobre o sexo é libertador e empoderador, como nos faz crer a profusão de declarações de famosas (ativistas) a expor a sua vida sexual a fim de empoderar outras mulheres, então qualquer viés crítico é inimigo da liberdade feminina e concorre para manter o status quo — trabalha assim em nome do patriarcado.

Mas e se esses discursos mesclam indistintamente autenticidade e inautenticidade? Quando não podemos distinguir a expressão livre de uma vontade antes reprimida de uma mera resposta a uma exigência social de aceitação e pertencimento, como podemos estar certos de que o falar sobre o sexo é expressão de liberdade, ao invés de uma forma mais insidiosa de subordinação? Numa sociedade onde a liberdade é exibida como troféu, como podemos estar certos de que as pessoas não estão meramente ostentando discursos fictícios a fim corresponder a expectativas sociais, a fim de serem validadas?

A cultura pop não lida com essas questões por uma razão muito simples: qualquer suspeita lançada contra a massificação dos discursos sobre a sexualidade compromete o papel dos influenciadores e empoderadores que integram os circuitos que alimentam esses discursos. Qualquer reflexividade erode a força supostamente empoderadora desses agentes e da identidade que eles oferecem ao mercado simbólico (capitalismo cultural).

A pretensão de naturalizar o sexo por meio da cultura pop cria o fenômeno que eu chamo de rumo ao explícito, que é uma tendência a trazer para o discurso público o que antes estava ou simplesmente interdito, ou restrito a esfera privada. Uma espécie de vulgarização deliberada com o propósito de forçar o sexo a ser um assunto inescapável, incontornável, a fim de que assim o tema possa ser naturalizado. Há uma gradativa tendência a remover os véus, como se o objetivo fosse ao final simplesmente exibi-lo como coisa explícita. Esse fenômeno é pretensamente uma resposta política ao conservadorismo, aquele que celebra mulheres recatadas e do lar, mulheres cuja vida sexual consiste simplesmente em comprazer a seus machos, ou que condena qualquer manifestação de sexualidades periféricas. A pretensão a naturalizar o sexo, a afastar a vergonha e os tabus ao seu redor é inteiramente louvável, mas a ausência de crítica e reflexão sobre as consequências que podem resultar dos esforços de naturalização contribui para invisibilizar efeitos nocivos e esterilizar alternativas emancipatórias.

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Em Beleza Americana, Angela Hayes, personagem de Mena Suvari, finge ao longo de todo filme que é uma ninfeta sexualmente ativa, mas ao final descobrimos que essa era apenas uma máscara. Não é essa a mais perfeita ilustração do que eu estou falando? Uma garota que, para se sentir validada, precisa elaborar um discurso sobre a sua sexualidade no qual ela tem um papel muito diferente da sua própria experiência e do seu desejo. Em toda essa circunstância o principal problema é que essa injunção a falar sobre o sexo não produz apenas discursos, mas também alenta práticas.

Imagine o seguinte contexto: uma garota jovem tem amigas com perfis no Instagram nos quais ostentam seus corpos, outras são camgirls, têm perfis no Reddit ou no Onlyfans, e de todas escuta sobre suas aventuras sexuais com namorados e parceiros, quase sempre fazendo concessões ao desejo dos homens e, ainda assim, se gabando de que são livres por isso. Que condições essa garota supostamente livre tem de descobrir seu próprio desejo ao invés de meramente repetir os padrões ao seu redor? Na sexualidade vale o mesmo que vale para a vida em geral, para fugir da mera repetição do que os outros fazem o preço é caro e nem todos estão dispostos a pagá-lo. A cultura pop faz pensar que as práticas ostentadas em discurso são expressão da liberdade facultadas por empoderadoras, mulheres que deram sua cara a tapa para permitir que outras mulheres pudessem se sentir à vontade para expressar seu próprio desejo. Não tenho dúvida de que a liberdade das mulheres se deve ao papel de outras mulheres, pioneiras na expressão de um desejo interdito e constantemente vigiado — mulheres como Anaïs Nin, conforme meu limitado conhecimento. Mas desde que tudo no mundo virou uma questão de identidades negociadas no mercado simbólico, a função de empoderar não é mais um papel espontâneo, de tal maneira que os discursos supostamente empoderadores são não poucas vezes reflexo de pessoas que querem para si o poder de influenciar outras mulheres, e disso resulta um falso empoderamento.

Se uma pessoa sexualmente livre quer também libertar — ser um modelo e um paradigma para as outras mulheres, isto é, ser influencer —, como podemos saber se não está tornando público apenas o necessário para ser vista como alguém cujo comportamento é livre o suficiente para ser paradigmático? Não é como se fosse inofensiva a construção desse espaço público moldado por discursos e comportamento de pessoas que querem tornar-se referência para os outros a qualquer custo.

A liberdade ostentada frequentemente é mera publicidade, vontade de controlar a percepção dos outros sobre nós mesmos. A naturalidade almejada por meio desse “tornar público” não virá pela progressiva encenação de um estar à vontade com o sexo, porque ela não pode ser criada artificialmente. O natural é por definição orgânico, e não artificial. O rumo ao explícito tenta combater a vergonha e o moralismo conservador — e assim libertar a sexualidade feminina e a das sexualidades periféricas — colocando o sexo como algo que devemos aceitar sem juízos morais, como se essa fosse uma solução. Como se o natural pudesse resultar da decisão consciente de remover qualquer barreira que nos impeça de ver a manifestação da sexualidade humana com a mesma naturalidade com que vemos dois cachorros cruzando na rua. Primeiro há um choque induzido pelos ativistas expondo sua sexualidade no espaço público (a vulgarização deliberada, como uma espécie de tática), e então se segue disso a naturalização; se o sexo estiver tempo suficiente no espaço público, logo se naturaliza, pensam eles.

A falta de reflexão sobre o poder e sobre as ideias de cultura e de natureza induz esses equívocos, mas o mais nocivo, como não poderia deixar de ser, é o modo como a lógica do capitalismo cultural escamoteia a ingerência perniciosa dos ativistas, fazendo parecer que toda a liberdade sexual é resultado do circo midiático por meio do qual as pessoas são influenciadas a se permitir serem livres. Como enfrentar e desmascarar a força pretensamente salutar da publicidade? A sexualidade se enfrenta ao principal problema político da sociedade humana: como estabelecer uma comunicação não-publicitária tão eficiente quanto a publicidade a ponto de nos libertar das suas garras? É um imenso desafio.

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