Certa feita estávamos eu e Jana comendo pizza na rua, quando notamos um cara sentado num banco da praça olhando para a tela de um celular e deslizando o dedo enlouquecidamente para a direita. Era um aplicativo para gays, porque nela só havia homens. O sujeito nem olhava a cara das pessoas, ele só queria foder. “Caiu na rede é peixe”, era o seu lema. Muito tempo depois eu pensei que essa era a perfeita ilustração daquilo que há de comum entre a sexualidade heterossexual e homossexual, aquilo que une os homens entre si, independente da sua orientação sexual. Os homens querem foder um buraco!
Não falo isso como quem se exime, sou igualmente um homem, tenho as mesmas perversões e desejos. Mas desde adolescente eu não me sentia confortável com essa liberdade que meus amigos desfrutavam, a liberdade de foder um buraco. Nunca me faltou o desejo e a vontade, mas me faltava um estar à vontade essencial, e isso para mim só podia ser uma espécie de repressão. Essa repressão me impedia de ser tão livre como aparentemente apenas um homem pode ser, me impedia de ligar a onerosa e exaustiva carga (e descarga) sexual a uma forma de relação a mais simples possível. Foder um buraco significa colocar o pau em qualquer lugar que possa acolhê-lo, a fim de gozar, não importa o contexto.
Não importa se o buraco está numa fruta, num animal, ou numa mulher, o importante é que o buraco exista para fazer gozar. Todos sabem que muitos garotos no interior iniciam sua vida sexual com galinhas, cabras, jegues, mas eu vou poupá-los de documentar essa prática aqui no texto (de nada!). Dos filmes que me vieram a cabeça, tendo isso em conta, primeiro está Call me by your name e a cena clássica em que ele se masturba com um pêssego; em Saltburn, Oliver fode literalmente um buraco no chão, sobre a cova de seu amado Felix. No filme Contos eróticos, de 1977, Claudio Cavalcanti fode uma melancia. Estou certo de que não preciso ilustrar os casos em que as mulheres são tratadas como meros buracos, no cinema ou fora dele.
Desde cedo os homens aprendem a perturbar uns aos outros como forma de exercer outra necessidade masculina, a de ser cruel. Somos como jovens ursos brincando de lutar para apurar técnicas de sobrevivência. Os homens que não exercem sua sexualidade conforme a cartilha têm que suportar o peso da diferença, e a constante acusação de viadagem. Pode parecer algo sem importância, mas quando se é jovem não é pouca coisa ser alvo de gozações dos outros homens a respeito de sua sexualidade. Por sorte, eu nunca fui um incel e nunca tive essa dificuldade quase patológica com as mulheres, por isso posso dizer que escapei das armadilhas da cartilha masculina relativamente ileso. Mas ainda acho que preciso haver-me com a essa impessoalidade do foder um buraco, ainda sinto quase dogmaticamente que isso me impede de ser um homem no sentido pleno — a impessoalidade dessa relação desejada pelos homens parece profundamente desejável, dada a nossa carga de desejo.
Entretanto, ainda que eu conceda aos homens (heterossexuais e homossexuais) que essa impessoalidade é desejável, e que diga que nesse sentido eu sou menos livre que os outros homens em geral; ainda que seja necessário também tornar-me homem nesse sentido, mesmo assim não me parece necessário definir esse comportamento sexual como paradigmático para a sexualidade masculina. Entende a dificuldade? Pode-se dizer que existe uma liberdade desejável, e ainda assim essa liberdade não necessariamente deve ser incluída num paradigma da sexualidade masculina. Isso quer dizer que ela pode ser desejável, salutar e expressão autêntica de liberdade — ou não! Não acho que o sujeito que vimos sentado no banco da Praça Pedro Zerolo tinha uma sexualidade paradigmática, ou seja, que sua relação com o sexo pudesse ser convertida em modelo para os outros homens. Mas acontece que é difícil não pensar que o único modelo da sexualidade masculina seja essa liberdade irrestrita que conduz quase inevitavelmente à promiscuidade. Embora os homens sejam, em geral, mais livres que as mulheres, isso não significa que eles tenham paradigmas sobre sua própria sexualidade. O que assume o lugar de um paradigma — um constructo simbólico e cultural ao redor do qual as práticas tem lugar, quase como um farol — é pura e simplesmente a liberdade, entendida como liberdade de foder, e mais particularmente de foder um buraco. Por isso eu disse em outro texto que a sexualidade homossexual é muito mais paradigmática em relação à sexualidade masculina que a sexualidade heterossexual, que ainda se encontra limitada pelas próprias travas com que inibe a sexualidade feminina.
Bem, os homens estão de acordo sobre a conveniência de foder um buraco, e não serei eu quem vai convencê-los a refletir sobre a necessidade de criar um paradigma diferente (eu que ainda sinto que preciso ser como eles), mas esse texto em realidade foi escrito apenas para fazer ver a diferença entre “ser livre” e ser um modelo. A liberdade sexual dos homens (heterossexuais ou não) tem muitas vezes algo de enfermiço, na falta de melhor palavra, e ainda que a gente não deixe de designá-la como liberdade, não convém transformá-la em paradigma. E diante disso, a pergunta que surge é: que lições podemos extrair dessa circunstância para pensar a sexualidade das mulheres?
A cultura pop (suas divas e influencers) nos faz pensar que a liberdade e, portanto, que o paradigma que as mulheres devem estabelecer por meio das práticas, deve ser a liberdade de foder, como a dos homens. E isso é verdade! Ou melhor, é uma meia verdade. É verdade que nenhum paradigma pode parecer desejável se não for capaz de criar uma naturalidade a respeito do sexo que se assemelhe à dos homens. Mas é verdade também que nem sempre essa liberdade é sinônimo de uma relação saudável e desejável com o sexo. Pode parecer que estamos falando de estágios, de condições fundamentais e de outras condições menos fundamentais. E que a condição fundamental para permitir que a sexualidade das mulheres possa finalmente se expressar sem inibições seja a de inverter o sinal e criar um equivalente, na sexualidade feminina, ao foder um buraco masculino. Pode ser que isso seja verdade, mas eu desconfio de que a publicidade não é a via pela qual deveríamos aprender essa lição. Os modelos de sexualidade que circulam como empoderadores para as mulheres ainda parecem pobres e tentam meramente substituir a inibição a que às mulheres estão costumeiramente submetidas por uma falsa naturalidade, a naturalidade do “tornar explícito”, do exibir e falar em público.
Essa é uma discussão que algum dia eu quero aprofundar por aqui, sobre como combater a vergonha de um desejo a que nunca se permitiu expressão, mas é certo que a liberdade dos homens tem muito que dizer a respeito sobre os caminhos que a sexualidade feminina não deve tomar, a despeito das lições professadas pelos distintos mercados que vendem a sexualidade como produto e identidade a ser consumida por jovens ansiosas por pertencer e serem reconhecidas como livres.