Resenha de Poor Things, de Yargos Lanthimos
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Não sei como nem por quê, mas em minha casa havia o exemplar de um maravilhoso livro chamado “Relatório Hite”, e eu o li quando tinha pouco mais de 12 anos. Fiquei completamente fascinado pelos relatos de como as mulheres se masturbavam, era tão fácil e acontecia nos mais inusitados lugares. Depois, mais velho, conheci as histórias sobre Lilith e quando então tive minhas experiências com mulheres constatei o óbvio: que a despeito da força e da violência masculina, da orgulhosa exibição da sua potência sexual (o pau duro), a sexualidade masculina era incomparavelmente menos interessante e menos potente que a sexualidade feminina.
Poor things se desenvolve inteiramente tendo como eixo a potência sexual feminina. É também uma espécie de romance de formação (Bildungsroman) em versão cinematográfica, com muitas peculiaridades. Bella Baxter, personagem demiurgicamente interpretada por Emma Stone, é uma espécie de Frankenstein criado por um outro Frankenstein, o doutor Godwill Baxter (Willem Defoe). O cientista eunuco transfere para o corpo moribundo de uma mãe suicida a alma — mind, Seele, res cogitans, chame do que quiser — do bebê que ela carregava. Bella Baxter é então uma criança no corpo de uma mulher. A medida que o tempo passa, a criança vai descobrindo seu corpo e seu desejo de mulher. E uma das primeiras coisas que lhe dizem quando esse desejo se manifesta é: “cuidado!, há regras na sociedade civilizada, o seu corpo não é livre, seu desejo só pode se manifestar em circunstâncias apropriadas, e mesmo o discurso sobre o sexo deve ser regulado e policiado!”.
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Bella se opõe ao policiamento desde o primeiro instante, e a ânsia de controle que o filme apresenta de modo tão rico dá lugar a situações e personagens muito interessantes. Max McCandles (Ramy Youssef), cientista chamado a exercer a função de sua baba, é uma figura masculina tão patética quanto Caleb, de Ex Machina. Ainda que louvável, a doçura nos homens não deixa de ter algo de patético quando não vem acompanhada de uma força que parece (e apenas parece) contradizê-la. Duncan Wedderburn, extraordinário personagem de Mark Ruffalo, se apresenta a Bella Baxter como uma espécie de libertador. Enquanto os outros reprimem sua sexualidade, Duncan é o primeiro a tocar sua boceta buceta sem pudores, mostrando claramente que desejava fazer isso e que não havia aí nada de errado. Bella pela primeira vez se sente entendida e foge com Duncan.
É o começo da formação sexual de Bella Baxter. Duncan, como bom homem, não quer envolvimento emocional, nem nenhuma amarra, e adverte Bella de que terá outros casos, ela não deve esperar exclusividade nem fidelidade. É nada menos que soberbo, no filme, a transformação do hipocritamente libertino Duncan Wedderburn num capacho completamente dependente da puta Bella Baxter. Mas muita coisa acontece antes que Bella decida vender seu corpo e se torne puta. E esse é um caminho de conhecimento e de sabedoria.
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A medida que encontra outras pessoas pelo caminho, Bella vai aprendendo sobre a vida e sobre sua sexualidade. E há obviamente um enviesamento político que é muito importante para o filme. Quando ela descobre a pobreza e as dores do mundo, para usar a expressão de Schopenhauer, Bella se vê prostrada na cama, chorando sem esperanças. Esse descobrir os outros, antidoto contra o egocentrismo que a sensibilidade comum nas mulheres nos faz querer atribuir ao feminino, marcará todas as escolhas de Bella dali em diante.
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Numa das partes mais interessantes do filme, Bella se encontra sem dinheiro e descobre, não sem algum entusiasmo, que pode ganhar dinheiro fazendo sexo (vendendo seu corpo). Surge então a maravilhosa figura de Mrs. Prim (Vicki Pepperdine), cafetã que agenciará e aconselhará Bella a partir daquele momento. Sua voz profunda é marcante. Bella Baxter agora é uma puta que a medida que vai conhecendo os aspectos mais sombrios da sexualidade dos homens, descobre também a sexualidade e a afetividade das próprias mulheres e a política por meio disso. Bem, eu não quero esgotar todos os aspectos do filme, mas, ao mesmo tempo, sinto que é um crime deixar de comentar algum dos muitos detalhes cuidadosamente espalhados ao longo dele. Talvez eu deva dizer, para encurtar a conversa e deixar algum registro, que a história de Bella Baxter é a história de uma puta comunista. E que o melhor do filme é que ele se monta de tal modo que é inevitável não ver a força e o orgulho — ao invés da vergonha — associado à condição de puta e à condição de comunista.
A sexualidade de Bella é vitalidade e força, uma força indesculpável e torrencial, que a torna livre o bastante para se tornar puta sem reservas. Bella Baxter se torna puta circunstancialmente, por necessidade, mas não é por necessidade que permanece assim, e nem passa por sua cabeça sentir vergonha e indignidade pela sua condição de puta. Por sua vez, o comunismo de Bella é natural, é aquele que sentimos quando percebemos — e percebemos isso no corpo, pelo amor — que a vida dos outros nos afeta, porque somos os outros, e que lutar por eles é como lutar por nós mesmo (afinal, é isso o que significa dizer que “somos os outros”). É mais uma obra preciosa de Yargos Lanthimos.
Quase esqueci de explicar o título. As pessoas costumam dizer que os homens têm um “brinquedo de montar”, e que, portanto, a participação dos homens no sexo envolve sempre algum esforço. As mulheres, por sua vez, têm um “brinquedo de encaixar” e por isso para elas o sexo pode ser muito, muito mais fácil do que para os homens. Já nessa dicotomia, que soa infantil mas que é quase constrangedoramente verdadeira, se pode entender o sentido de afirmar a potência sexual feminina.
Essa potência é explicitamente afirmada na cena do filme em que Bella Baxter pergunta a Duncan Wedderburn, após ele não dizer que não poderia transar com ela uma quarta vez seguida: “será essa uma deficiência masculina?”