Um conceito positivo de post-truth

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É inacreditável a quantidade de assuntos complexos que um meme pode apresentar com simplicidade e humor

É possível usar o conceito de post-truth de modo não descritivo, usar o conceito para apresentar uma perspectiva, ao invés de descrever — como quem convenciona um padrão de medida. Nesse contexto, a post-truth significaria reconhecer que o real, o conjunto indeterminado do que existe (e também o que não existe, pois o real inclui também o símbolo, e não apenas o ôntico e ontológico), contém mais do que elementos descritíveis; significa também reconhecer que a verdade — por mais importante que seja — tem um papel secundário, ou deveria, já que qualquer hipotética totalidade do conhecimento nunca coincidiria com os limites do real, pois o Real, ao contrário do conhecimento, não tem limites. O conhecimento precisa de limites, precisa pensar totalidades, precisa de regularidades e de determinação, enquanto que o Real — o sentido entendido como coisa mais além do fato, da verdade, do objetivo, do não ficcional, do verídico, do verificável — esse não é regular nem forma totalidades, ele é o caos (indeterminação) a partir do qual toda regularidade se cria por intervenção de uma inteligência. Essa linguagem que tenta agarrar o real é muito mais do que o instrumental científico em toda a sua glória e esplendor.

É claro que o real é também indescritível e não apenas o conjunto dos fatos conhecidos (e possíveis), mas muita gente acha que o indescritível “não existe”, que o indescritível é tão somente aquilo que ainda não foi descrito, o ainda desconhecido. Essas pessoas acham que o indescritível do qual fala o místico, por exemplo, é apenas uma grande sombra projetada pelo fogo de um conhecimento ainda incipiente, e quando o lume desse conhecimento estiver por toda parte as superstições desaparecerão, não haverá mais o místico e tudo aquilo que é relegado à condição de lenga-lenga por não ser objetivo como o trabalho científico.

A hipertrofia do conhecimento e da verdade tende a tornar a ciência uma espécie de buraco negro que a tudo engole. Tudo se transforma numa hipótese a ser refutada ou confirmada. O real, nesse contexto, é um mapa em construção, algo que a ciência tenta espelhar por meio de suas teorias e instrumentos (o representacionalismo ainda é a metafísica da ciência). Assim, todas as perspectivas sobre o real são teorias sobre o real, variações da hipótese de Sapir-Whorf. A linguagem cria sim a realidade, mas essa não é uma hipótese a ser provada, mas o sentido de uma perspectiva e de uma atitude frente ao real.

A pretensão descritiva da ciência tem uma centena de efeitos fascinantes e desejáveis, mas seu efeito colateral consiste em nos enclausurar num mundo onde tudo é um problema técnico passível de ser contornado por futuras descobertas; onde o político é um artefato obsoleto destinado a ser suplantado por tecnologias vindouras. Nesse sentido, a lembrança evocada pelo meme acima de que algo (ou melhor, quase tudo) escapa ao propósito ordenador da linguagem é muito interessante. Somente quando escapamos à armadilha de pensar que o mundo se reduz aos nossos constructos simbólicos podemos criar um modo de agir menos marcado pela nossa húbris tecnológica, mais ajustado ao planeta e ao nosso necessário pertencimento a ele.

2 comentários

  • hahaha
    Rafael, eu bem queria ter essa conversa com Hegel, Hegel é minha grande dívida com o pensamento alemão. E eu não apenas vejo muitos aspectos do seu pensamento que me interessam, que eu acho que poderia “me apropriar”, como também sou muito influenciado indiretamente, com Marcuse em especial. Mas ainda me falta essa conversa.. depois do doutorado eu até comecei a ler a Fenomenologia do Espírito, mas é difícil, quando já não se tempo o tempo/disponibilidade da pesquisa, ter fôlego pra ler com a devida atenção um pensamento tão robusto. Palpitando desde já sobre minhas diferenças com Hegel, acho que deve ter muito a ver com meu “pós-modernismo”. Mas me diga aí suas impressões dele..

Por Leonardo Bernardes

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