Coordenação ou confluência? Parte 1: o exército e as redes

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Esse é o primeiro texto de uma série (de três) sobre confluência. O texto seria publicado na Revista Farolete, no entanto, infelizmente a revista será descontinuada e por isso eu decidi publicá-lo aqui. Não é exatamente fácil e acessível, porque talvez seja excessivamente “experimental”, mas a ideia em si é uma das minhas preferidas.

A eficiência parece indispensável, por isso talvez não seja má ideia formar um exército. Há muita coisa em jogo nas guerras culturais em que supostamente estamos mergulhados. O exército é um paradigma de coordenação e quem por trágica casualidade se encontrasse num edifício em chamas preferiria estar acompanhado por militares do que por civis, pois assim reduziria significativamente a chance de morrer pisoteado.

O exército, no entanto, não oferece espaço à reflexão. Qualquer instituição que valorize primordialmente obediência e disciplina joga sal sobre o terreno onde deveriam medrar a reflexão e o pensamento. Assim, nos encontramos num impasse. Segundo os propósitos materialistas precisamos coordenar nossas ações se queremos orientá-las a metas comuns — que metas comuns, idiota? — mas o próprio paradigma de coordenação sugere um preço demasiado caro para a eficiência, a esterilidade reflexiva.

Será que é possível coordenar-se com a eficiência do exército sem ensaio e treinamento? E será que a ênfase na prática, pressuposta na ideia de coordenação, não dá ao corpo um privilégio exagerado? Estamos ligados ao corpo e não há nisso nenhum fardo, mas se precisamos nos coordenar a outros corpos devemos adestrá-los, esquecer nossa inteligência e estar à vontade com a ideia de heteronomia. Quando pensamos no corpo, é o hábito que molda a coordenação. Repetição: memorização pela repetição exaustiva de movimentos e ações. Repetição: memorização pela repetição exaustiva de movimentos e ações. Repetição: memorização pela repetição exaustiva de movimentos e ações.

Mas e aquilo que está além do (corpo && shell && machine) também precisa de treinamento exaustivo para gerar coordenação? — O ghost, você quer dizer? Não é preciso chamá-lo assim, vamos chamá-lo simplesmente de inteligência. A inteligência não precisa de treinamento para coordenar-se a outras inteligências? Não precisa de ensaio exaustivo e repetição? A inteligência está livre da influência formadora do hábito, ou ela precisa dessa força tanto quanto o próprio corpo?

O espírito não está livre da força do hábito, ao contrário, ele talvez seja a melhor expressão dos efeitos da repetição (efeitos? causalidade no mundo espiritual? — vamos deixar assim!). Mas isso não vem ao caso agora. O que importa é que ainda que a inteligência também enfrente seus próprios fantasmas na luta pela autonomia (emancipação da repetição), em comparação com o corpo, ela dá lugar a algo que apenas precária e provisoriamente poderíamos denominar como coordenação. O corpo precisa de direção, precisa saber o que deve fazer para poder agir. Por isso, se um grupo de corpos quer se coordenar é preciso contar com uma inteligência central que silencie as inteligências individuais destes corpos em favor de uma instância central de inteligência que espera que eles não sejam mais do que meros zumbis a cumprir ordens sem refletir e questionar. Daí a necessidade da cadeia de comando militar. Se as pessoas não estiverem de acordo sobre o que fazer, suas ações não podem se coordenar.

A inteligência entendida como algo que pode atuar para além do corpo (atuar não é bem a palavra, mas vamos ficar com ela por ora) pode se coordenar a outras inteligências, em certo sentido, à parte o corpo? A inteligência não precisa de direção, porque sua direção pode vir da rede, e justo porque sua natureza não é exclusivamente executiva. A inteligência não age (embora se manifeste na ação), mas ela pensa e pensa no tempo. E no tempo ela pode estar sem direção sem estar perdida. A direção pode ser encontrada a qualquer momento, destituída e reinstituída a partir de novas bases a qualquer momento, a depender da familiaridade de cada um com a instabilidade.

O espírito não precisa da estabilidade do corpo, embora a completa instabilidade e irregularidade do espírito possa ser caracterizada como a própria loucura (morbus sacer, cabe também lembrar o que pode significar e o que já significou a loucura fora do inescapável campo de força normativo imposto pelos padrões de saúde mental). Isso significa que a coordenação dos espíritos, por assim dizer, tem características diferentes da coordenação dos corpos. Entretanto, ela não é uma coordenação espiritual no sentido de ser algo etéreo, imaterial, e sim profundamente corpórea e carnal.

E o mais importante: essa coordenação não pode ser verdadeiramente uma coordenação. Falta o corpo, o lugar da ação, e falta também a centralidade dos núcleos de direção/decisão. A coordenação de espíritos só pode ser confluência, porque a confluência é uma forma de espontaneidade (não-subordinação). A espontaneidade não é dirigida, como as ações no treinamento, mas ela não é espontânea no sentido de ser pura e sim no sentido de que, nos seres autônomos, o espontâneo é a manifestação do que não é redutível (às suas engrenagens || aos seus constituintes). A espontaneidade é uma forma de fugir ao esquema master/slave[1], é o que torna possível a coordenação sem subordinação. Confluência.

METÁFORA TECNOLÓGICA, entendendo/sentindo o espiritual

O espiritual precisa ser sentido no corpo, mas para entender o espiritual melhor uma metáfora, a metáfora tecnológica, a metáfora das redes. A conexão entre seres humanos — a conexão entre inteligências e espíritos — não é uma tecnologia, mas melhor pensar como se fosse para entender seu sentido.


[1] Os sistemas master/slave são sistemas centralizados nos quais um núcleo dirige as ações dos agentes que o constituem. Cluster de computadores, servidores e clientes, há muitos modos de enxergar a relação entre computadores como exemplos de sistemas onde se conserva a distinção funcional entre os que obedecem e os que mandam (ou entre os que prescrevem e os que só aplicam). As redes blockchain são o exemplo mais célebre (e promissor) de sistemas não-centralizados, eles simbolizam a promessa de novas possibilidades de organização tecnológica que diluam o poder dos polos centralizadores (no caso das criptomoedas, dos bancos).

PS. No próximo texto eu trato de modular a força dessa metáfora, pois numa Tecnocracia é fácil descambar para a crença dogmática em soluções tecnológicas. O limite da metáfora das redes descentralizadas se mostra claramente no fato de que uma rede peer-to-peer, por exemplo, ainda assim supõem a necessidade de um mesmo protocolo de comunicação (o que seria equivalente a exigência de uma lógica [geral] como árbitro no conflito de opiniões).

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