Como boa parte dos animais, o ser humano é compelido a imitar desde o princípio da sua vida. Sua capacidade de aprender depende do sucesso em repetir o que fazem os outros seres humanos. A triste realidade é que não há garantia de que a força da imitação será combatida uma vez que ela tenha cumprido seu papel, o ser humano não é obrigado a ser autônomo, a pensar por si mesmo, a emancipar-se das opiniões e ideias dos outros, profundamente enraizadas em nossa cabeça. Parece haver mais razões em contra a emancipação que a favor, a imitação nos aninha no seio de uma comunidade de acordos, de uma tradição que nos conforta e oferece uma sensação de pertencimento sem a qual é difícil viver. O que oferece a autonomia?
Bem, não se trata de um cálculo, de um considerar variáveis e escolher a opção mais vantajosa. O que a autonomia pode oferecer não convence por ser vantajoso, aliás, convencimento não é nem mesmo a palavra adequada, pois seus encantos não são estritamente racionais, têm um caráter mais holístico. O que pouco a pouco pode atrair é o mistério de algo que apenas se deixa vislumbrar, o mistério de quem realmente somos.
A amizade oferece uma das poucas circunstâncias na qual podemos sentir afrouxar-se as demandas por conformidade (normalidade), e é fora dos rigorosos quadros normativos que escutamos a hesitante voz deste outro que nos habita, nós mesmos. Amigos são aquelas pessoas com quem nos sentimos a vontade para ser outra coisa que não a amálgama que a repetição faz de nós, e esse outro não é o produto de um processo instantâneo de conversão, mas sim um paulatino acostumar-se a ser quem se é. Por meio do constante permitir-se ser outra coisa que não um mero imitador é que podemos chegar a ser quem somos. Essa constância, na amizade, acompanha o prazer da companhia, e o encanto de uma descoberta dialógica (e não solitária e solipsista), daí porque Goethe fala do sentimento de expansão e crescimento que amigos nos fazem sentir, como se em sua presença fôssemos maiores do que realmente somos.
Pouco a pouco, se nos habituamos a agir conforme esse novo princípio, a liberdade para ser de outro modo que conquistamos quando estamos perto de pessoas que não se importam que não sejamos meros zeladores do princípio da realidade, passamos a entender o significado da autonomia, e nos aventuramos a descobrir quem somos, ou melhor, a nos permitir ser quem somos. Trata-se de um permitir-se, pois isto que somos não necessariamente se enquadra nas normas e valores vigentes e não é sem resistência que aceitamos esse desafio. Só quando nos sentimos a vontade para nos desarmar, deitar as máscaras, somente nessas circunstâncias, e mesmo assim hesitantemente, podemos sentir quem somos. Eu não disse saber, mas sentir. Saber quem se é é um sentir quem se é — consiste numa experiência que não se limita ao plano cognitivo, epistêmico, é uma experiência ética ressignificadora, pois ao mesmo tempo em que nos damos conta do que podemos ser (posto que a tarefa de saber quem se é não tem fim e se estende por toda a vida) descobrimos o que os outros podem ser para nós. Nem todos podem ser como Zaratustra, que descobre quem é sozinho, no ermo de uma caverna distante; para a maioria de nós são os outros que nos revelam quem nós somos e essa experiência é ao mesmo tempo a descoberta do potencial ético e político da amizade.
— Mas o que tudo isso tem a ver com a realidade e o Real? O império das normas, das leis e dos acordos, disso que Freud chama de princípio de realidade, curiosamente nos afasta do Real, no seguinte sentido: as normas automatizam ações e pensamento, criam rotas comuns por meios das quais os outros seres humanos podem ter via de acesso a ideias não necessariamente comuns. O resultado da força do convencional é uma espécie de encenação do Real, o Real é vivido segundo regras e convenções que tentam ajustar tudo a uma experiência social partilhada, por isso a heteronomia e a imitação. E no plano social disso resulta o que Erving Goffman chama de Representação do Eu na vida cotidiana. Assim, a realidade entendida como produto de um modo de organização da experiência é pouco Real, pouco autêntica, na maioria das vezes quase falsa, tantos são os filtros aplicados sobre seu conteúdo original. Na verdade, a distinção entre a realidade como um conteúdo puro e não organizado e a realidade filtrada pelas lentes das convenções é uma abstração, um recurso heurístico para mostrar o efeito da sociabilidade sobre nossa experiência subjetiva, pois nós nunca a experimentamos senão como coisa já organizada e pronta. E as palavras que dão a dimensão desse mascaramento que pode ter lugar pelo predomínio do social na percepção da realidade são fingir e fingimento.
Fingir é ajustar o que se pensa e sente às necessidades do social. Assim, apresentado abstratamente, o princípio da realidade parece razoável e justo, e em certo sentido é. Mas o efeito subjetivo e intersubjetivo desse ajuste é o contato apenas com o que é mediado e uma infamiliaridade com o Real. Não é que a realidade seja Irreal, é que a realidade singulariza o Real para torná-lo não apenas palatável, mas gerenciável, passível de ser operado segundo regras gerais. É como se existisse apenas um modo de ser. A amizade é o primeiro contato verdadeiro com o lado de fora e o impacto desse contato é muito mais profundo do que qualquer experiência que tenhamos no marco estável organizado pelas convenções sociais. E é a força dessa experiência que subverte o sentido da realidade, pois perto da intensidade do que é autêntico mesmo a mais patente verdade perde sua concretude, é como se assim ganhássemos um novo parâmetro, uma nova medida do que é real e verdadeiro, uma medida não epistêmica, não proposicional e não normativa — se é que faz sentido falar de medida nesses termos. Assim como não sabemos quem somos até nos sentirmos livres para agir fora dos marcos convencionais da sociedade, tampouco podemos identificar o que é Real sem antes ter sido afetado por algo real.
A amizade é uma forma de amor, ou melhor, o amor é uma forma de amizade, um subconjunto da amizade (Freud dizia que a amizade era o amor inibido em seus fins) e sua experiência é o melhor guia e o mais confiável mestre na lida com a vida, não apenas desde a perspectiva subjetiva, mas também sob o prisma social. Uma sociedade na qual a amizade seja não um discurso vazio e publicitário, mas um valor presente em cada ação de seus membros, é uma sociedade imune ao fascismo, aberta e capaz de aprender com a diversidade da experiência humana.
Vim aqui, hoje, por saudades de você, meu amigo. Ler o que você escreveu é estar com você. Venho, leio, aprendo…e saio mais feliz da leitura, porque saio maior do que entrei. Amizade é tesouro!
Ohhh, obrigado, Mara! Pois dessas lições que eu conto, muitas eu aprendi com você :*