Já perdemos a camisa amarela da seleção brasileira para grupos que souberam se apropriar politicamente de sua enorme força simbólica, não acho que seja trivial perder também o conceito de bondade (e de bem, por consequência). Não é por moralismo. É que perder esse conceito, ou banalizá-lo, significa perder uma ferramenta decisiva na lida com o mundo, um elemento importante do referencial com que as pessoas no Brasil veem o mundo, não dá pra brincar de para além do bem e do mal. Se deixamos de ter claro o que para nós é a bondade — mesmo sabendo da relatividade dessa norma e de todas as críticas feitas à moral — nós perdemos um conceito que tem uma função política decisiva.
Não se trata de nenhum conceito metafísico, o que eu chamo de bondade natural não é a mais que uma inclinação espontânea a ajudar — portanto um critério perfeitamente arbitrário para a ideia de bondade. Dessa forma, para mim, as pessoas que ajudam as outras porque lhes parece natural ajudar, essas sim são pessoas boas. Ou seja, é uma questão de atitude e disposição espontâneas. Quem ajuda outras pessoas porque lhe parece natural ajudá-las não necessariamente precisa se dizer uma “pessoa de bem” ou “cidadão de bem”. Claro que a bondade, como qualquer outra coisa, pode se tornar um ativo no mercado simbólico. Pode gerar poder. E o poder corrompe, desvirtua (quem assistiu Young Pope certamente lembrará de Madre Antonia). Mas o poder não necessariamente corrompe todas as pessoas, não é como se todo mundo estivesse negociando num mercado simbólico. Quem acredita que todo amor é amor próprio não vai encontrar nenhum argumento que o convença do contrário. E isso não significa que a proposição “todo amor é amor próprio” é verdadeira, significa apenas que essa proposição é um dos eixos da visão de mundo de quem a enuncia como verdadeira e que, por isso, ele pode mantê-la ali não importa o que outra pessoa diga. Eu acredito no amor porque já o senti, acredito na bondade porque já a senti e não posso sentir mais que tristeza por quem acredita sinceramente que todo amor é amor próprio, mas não estou aqui pra vender nenhuma verdade. Eu só queria dizer que do pouco que eu li sobre Marielle Franco, ela era uma pessoa que parecia satisfazer o meu (simples) critério de pessoa boa: para ela era natural ajudar e lutar pelos outros. Lamento profundamente que muita gente, assim como eu, só tenha chegado a conhecê-la na absurda circunstância do seu assassinato. Nesse mundo tão sombrio de desconfiança e medo pessoas como ela dão a pessoas bobas como eu algum ânimo, alguma confiança.
E pra quem vive de denunciar a hipocrisia na bondade alheia: as pessoas boas são humanas como todas as outras, como foi humano Santo Agostinho. Mesmo os santos podem ser humanos… demasiado humanos. A hipocrisia é algo bem particular, se ao olhar uma pessoa com cuidado notamos suas “imperfeições”, isso não significa que por isso seja hipocrisia considerá-la boa — significa apenas que quem chama isso de hipocrisia tem uma noção demasiado estreita sobre a variedade dos tipos humanos. E, por consequência, não pode compreender a ideia de bondade como algo perfeitamente compatível com muitos aspectos dessa ampla variedade. Aliás, assim se expressava Thoreau:
Eu quero a flor e o fruto de um homem; que alguma fragrância flutue dele até mim, que alguma doçura dê sabor a nosso contato. A bondade dele não deve ser um ato parcial e transitório, mas um transbordamento constante, que não lhe custa nada e do qual ele não se apercebe. É uma caridade que encobre uma multidão de pecados.
Não é a bondade uma espontaneidade perfeitamente compatível com tudo que é humano?
PS. Desculpa pelo texto meio comuna-esquerdopata, eu acho que doutrinação esquerdista que domina o Brasil está fazendo efeito, devo estar virando comunista.