O rei nu e o medo de ser idiota

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No conto de Christian Andersen “A roupa nova do rei” é uma criança quem desmonta a farsa. Claro, só uma criança está livre do circo de vaidades que impede os adultos de denunciarem o que supostamente seria sua própria idiotice, anunciando que não enxergam a roupa do rei. Assim, a verdade vem à tona não por meio de alguma virtude analítica, mas em razão da espontaneidade infantil. Alguns elementos dessa fábula podem servir de parâmetros comparativos para entender o que tem acontecido no Brasil nos últimos anos. Há tempos alguns personagens vendem a imagem de que política brasileira é uma farsa de proporções semelhantes àquela relatada no conto. Não por outra razão Bolsonaro lidera a corrida presidencial entre os mais ricos. No Brasil vigora um bacharelismo sem bacharéis, resultado da mistura de uma escravidão nunca curada, de uma desigualdade que se internalizou atravessando todas as classes sociais e de um modelo educacional historicamente fracassado. Nossos bacharéis (com ou sem diploma) estão sempre dispostos a reverenciar autoridades, títulos, ideias, especialmente se estes vem de fora, já que segundo eles o Brasil não é capaz de produzir pensamento. Disso resulta a ideia de que o país vive uma farsa que apenas os corajoso e iluminados são capazes de ver. A farsa do comunismo, do bolivarianismo e outros que tais, dissimulados, vejam só, por uma imprensa conivente, omissa quando não cúmplice.

A situação é semelhante a da fábula, com algumas diferenças significativas. Portanto, trata-se também de desmontar uma farsa. Nesse caso, porém, não é a virtude espontânea da liberdade infantil que revela a realidade que a farsa esconde, mas uma inteligência autoproclamada. Por isso é preciso deixar de ser um idiota. E como ensinam certos gurus, para deixar de ser idiota é preciso ter em conta alguns elementos básicos. O agente aliciador desse discurso, reparem bem, é a construção de uma dicotomia entre ‘idiotas que não sabem o básico’ versus ‘pessoas que se dispuseram a conhecer o essencial para não participar da farsa’. Ora, quem gostaria de ser visto como um idiota enganado? Na fábula, o receio de revelar a falta de inteligência levou adultos a fingir o que só uma criança não podia esconder: que o rei estava nu. No Brasil, o debate público parece cada vez mais ameaçado pela intransigência de pessoas que creem seriamente que, se abrirem mãos de alguns ideias dogmaticamente adquiridas, serão coniventes e cúmplices de uma farsa.

Em ambos os casos, a instrumentalização do medo de parecer idiota permite que as pessoas sejam enganadas. O medo de ser idiota e o poder de pertencer a uma classe que pode acusar outros de serem idiotas são elementos de uma estratégia de sedução e aliciamento. Mas quem pode culpá-los, não é mesmo?

PS. O livro do torturador Carlos Alberto Ustra se chama “A verdade sufocada”. É uma variação do mesmo princípio: supor uma verdade escondida revelada apenas por corajosos. Quem não quer ser o corajoso enunciador de uma verdade sufocada?

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