Quando Eric Garner morreu assassinado por um policial que manteve o estrangulamento mesmo depois de ele ter dito: “eu não consigo respirar”, houve protestos nos EUA. Depois da decisão judicial de não indiciar o policial que o matou, a coisa ficou feia e os protestos ganharam uma dimensão extraordinária, mobilizando todo o país. Na Bahia, por outro lado, o assassinato de pessoas pela polícia é algo comum, banal, ordinário. Mesmo que o assassinato não seja resultado de uma ação mal executada e irresponsável, mas de tiros (mais de um) deliberadamente disparados após espancamentos (tortura). É provável que a morte de Alexsandro Lima, ao invés de ser motivo de protestos que se estenderão por todo país, se transforme apenas em mais uma estatística. Inútil, como toda estatística produzida na Bahia — já que falta vontade (e competência?) para enfrentar o (real) problema que elas refletem.
E as coisas permanecerão assim por uma razão simples: a despeito da comoção breve, quase instantânea, que a morte gera — se é que gera alguma comoção real, para além da nossa indignação burocrática de cada dia — ninguém quer abrir mão da não-sensação de segurança e da promessa de paz que oferece a polícia baiana. Digo não-sensação de segurança porque ninguém em sã consciência dirá que a polícia gera qualquer sensação de segurança, a não ser que você seja rico, preferencialmente “branco”, e esteja em alguma boa região da cidade. Se for pobre, preto e jovem, a presença da polícia só gera tensão. No entanto, o mais importante é a crença cega (burra?) na promessa de paz que, de alguma maneira, parece associada à polícia. Se a humildade cristã fartamente arrotada em todo país encontrasse algum abrigo, por menor que seja, na cabeça de intransigentes defensores das ações assassinas da polícia, eles se fariam algumas perguntas: (1) a violência da polícia acabará com a violência da criminalidade? (2) a violência da polícia, em algum lugar do mundo, ajudou a reduzir índices de criminalidade? (3) a violência e o assassinato sistemáticos ajudaram algum país no “combate às drogas”?
A pedância dos defensores da polícia se ampara, eu suponho, na ideia de que a polícia vai matar todos os bandidos e, assim, nos tornaremos uma sociedade pacífica e ordeira. É triste ver que mesmo as classes mais baixas da nossa sociedade compartilham a ideia do presidente Washington Luis de que “a questão social no Brasil é caso de polícia”. Não tem nada a ver com a imensa de desigualdade que ainda sustentamos garbosamente, com a falência do nosso sistema de educação, tem a ver, isso sim, com o fato de que ainda não matamos certos indivíduos, para, pedagogicamente, torná-los exemplos, a fim de inibir a ações de outros bandidos. Como, aliás, aconteceu em todo mundo. Os países que ostentam taxas razoáveis de criminalidade e violência são aquelas que conseguiram matar e punir exemplarmente seus criminosos — pensa o sujeito que defende a polícia.
O que acontece é que esse sujeito, esse mesmo sujeito que defende a polícia incondicionalmente, é quase sempre um negro ou um mestiço, como grande parte de nós brasileiros. E está igualmente sujeito às mesmas arbitrariedades. Mas nada, absolutamente nada, fará com que ele, diante de um crime brutal como o assassinato de Alexsandro Lima, se sensibilize a ponto de desfazer sua adesão incondicional aos métodos policiais. Ao bom e velho “bandido bom é bandido morto”. E por essa razão (uma delas, claro) o movimento negro, com a melhor das intenções, pretende implementar o racialismo americano no Brasil, a fim de fazer a adesão à questão negra sobrepor-se a essas adesões fragmentadoras que, no final das contas, não oferecem qualquer possibilidade de mobilização, ao contrário, desagregam. (Pretensão, aliás, da qual discordo.)
Nossa sensibilidade, nossa empatia, e qualquer remota chance de identificação, estão inteiramente paralisadas pelo medo. (A violência é desagregadora por isso, eu disse faz algum tempo.) E quando o medo cala a empatia, o resultado só pode ser o silêncio diante de todos os absurdos que tem acontecido em Salvador. Silêncio, aliás, espesso, quase palpável, que se sente na imprensa nacional diante da chacina recentemente promovida pela polícia baiana. Silêncio só rompido pelas declarações pavorosas e lamentáveis do governador da Bahia.
Aqueles que endossam cegamente as ações policiais deveriam se perguntar, humildemente, se é este o caminho para a paz, se é assim que chegaremos a uma situação melhor. Pois toda essa violência gratuita, inútil, e, sobretudo, ineficiente, se manteve e se mantém porque nós somos coniventes, omissos e cúmplices. Porque nós internalizamos como verdade irrevogável a ideia de que punir (com a morte, na maioria das vezes) não é apenas a resposta emocional imediata ao crime, mas a solução lógica, e mesmo racional, à criminalidade e à violência. A polícia baiana (e brasileira) é assassina porque nós acreditamos que assim nós conseguiremos vencer a violência e a criminalidade.
PS. Se já nos falta empatia, então, uma vez mais, apelo ao amor próprio: ontem foi o filho de Carla Lima, amanhã pode ser seu filho.