O mito da realidade fática (ou do fenômeno natural)

O

No bom texto em que explica a constitucionalidade da decisão do CNJ sobre o casamento igualitário, Pádua Fernandes apresenta também um argumento costumeiramente empregado para justificar o congelamento do conceito de família:

[…] a família é um fenômeno essencialmente natural – sociológico, cujas origens antecedem o próprio Estado. É dizer: família é uma instituição pré-jurídica, surgida das mais remotas experiências de aglomeração e vinculação pelo parentesco e reciprocidade, anterior por isso mesmo ao próprio casamento, civil ou religioso. Não pode o Direito – sob pena de ser inútil – pretender limitar conceitualmente essa realidade fenomênica chamada “família”, muito pelo contrário, é essa realidade fática que reclama e conduz a regulação jurídica.

As palavras são do Ministro Luís Felipe Salomão, conforme relatado no post. Pádua Fernandes explica:

Essa
realidade fática é que conduz a regulação jurídica. Isto significa que o
casamento entre pessoas do mesmo sexo somente passou a ser reconhecido
juridicamente porque existe socialmente. E mais: a própria sociedade,
criando esse fato social, gera efeitos jurídicos que o Judiciário deve
reconhecer, sob pena de agir antidemocraticamente.

Argumentos desse tipo são semelhantes àqueles que atravessam às questões envolvidas em torno do conceito de vida: aborto, células tronco, etc.

Notem que o caráter fático é o pilar da estruturação do argumento. Isto é, porque algo existe como coisa que não pode ser negada que a legislação deve ser assim e assado. Algo que é real (realidade), verdadeiro. Mas como se chegou à constatação dessa realidade? E por que ela permanece estanque? A ideia de que nossos conceitos espelham a natureza é uma tese filosófica onerosa e de difícil defesa, embora ampare não só as opiniões de juristas conservadores, mas o grosso das manifestações de cientistas que passam ao largo de qualquer livro de filosofia.

Se a realidade fática molda e conduz nossos conceitos (jurídicos ou não), como se explica que ao longo da história eles tenham sido tão diversos? Se há uma diversidade de conceitos, mas uma só realidade, a quem caberá decidir qual é o conceito que se ajusta à realidade? (esta não é uma questão política ou biopolítica?)

A inversão que coloca a realidade não como matriz conceitual, mas como resultado de operações conceituais, deixa sem chão os advogados dessa tese — que não podem explicar a historicidade de qualquer conceito (o conceito de morte, por exemplo) senão hipostasiando um mundo platônico onde a morte é uma entidade absoluta da qual nos aproximamos gradativamente. O conceito de família, como conceito de vida, é um instrumento conceitual por meio do qual intervimos no mundo — e também no mundo social –, querer engessá-lo apelando a uma realidade fática como coisa definitiva, à maneira de uma justificação epistemológica, é apenas dar mostra de não ter frequentado as boas mentes que há longos séculos tentam nos mostrar não apenas a contingência do conhecimento humano, mas também seu caráter convencional; que conceitos e relações que julgávamos necessárias eram, quando muito, produtos de uma natureza humana comum, mas nunca evidência que poderíamos extrair da mera contemplação de um fenômeno. Hume não nos convida a adivinhar para onde vai uma bola de bilhar atingida a toda força por uma outra — sem recorrer à experiência? Diante dessa pergunta embaraçosa, constatamos que a realidade não nos conduz a nada pelas suas próprias qualidades, que ela depende de uma articulação que se impõe de fora.

Onde se enxerga uma realidade fática, há tão somente as formas pelas quais nós a fabricamos.

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