O ponto em que o diálogo atinge a rocha dura

O

Aproveitando a ocasião do Colóquio Da Certeza, recortei algumas das muitas passagens do livro que dão lugar a consequências bombásticas:

94. But I did not get my picture of the world by satisfying myself of its correctness; nor do I have it because I am satisfied of its correctness. No: it is the inherited background against which I distinguish between true and false.

95. The propositions describing this world-picture might be part of a kind of mythology. And their role is like that of rules of a game; and the game can be learned purely practically, without learning any explicit rules.

Há uma mitologia de fundo operando no subsolo da nossa linguagem e os componentes dessa mitologia, as proposições que a constituem, não estão lá porque são verdadeiros. Sozinho, esse comentário já seria o bastante para inspirar pensamentos fecundos, pois se a maquinaria da linguagem funciona distinguindo uma parte que parece imune à correção (ao falseamento e à dúvida), parece que muitos problemas tem lugar a partir do desconhecimento de que, em certas ocasiões, estamos em terreno rochoso.

(Essa questão que não é propriamente inédita ou exclusiva do Da Certeza, mas uma marca do própria pensamento maduro de Wittgenstein).

Um pouco mais adiante, um imagem ajuda a explorar os efeitos dessas observações:

106. Suppose some adult had told a child that he had been on the moon. The child tells me the story, and I say it was only a joke, the man hadn’t been on the moon; no one has ever been on the moon; the moon is a long way off and it is impossible to climb up there or fly there.–If now the child insists, saying perhaps there is a way of getting there which I don’t know, etc. what reply could I make to him? What reply could I make to the adults of a tribe who believe that people sometimes go to the moon (perhaps that is how they interpret their dreams), and who indeed grant that there are no ordinary means of climbing up to it or flying there? — But a child will not ordinarily stick to such a belief and will soon be convinced by what we tell him seriously.

(Convém lembrar que as anotações que deram origem ao Da Certeza foram escritas na primeira metade do século passado). A relação adulto/criança é ilustrativa, porque representa a relação que mantemos com certos aspectos da nossa linguagem e a maneira como eles chegam até nós. Uma criança é ensinada a acreditar nos adultos, nos seus professores, e a crença infantil é um ponto pacifico sobre o qual se estrutura o aprendizado. Mas ora, essa mitologia herdada e ensinada fixa alguns pontos imóveis, ou melhor, cria uma zona de práticas que fixam um eixo natural apelo seu movimento — como o redemoinho que, pelo movimento das águas, cria uma zona no centro como um eixo imaginário.

Pois bem, uma vez situados no horizonte dessa mitologia (injustificada, no sentido de que está lá não porque seja verdadeira, como as regras de um jogo), como poderíamos responder a uma objeção que comprometesse as bases que lhe dão suporte? Em outros termos: o que contaria como uma espécie de falsificação, de contra-exemplo, para alguém que tivesse sido alvo de ataque justo às coisas que considera inatacáveis? Dando à imagem cores familiares: o que o ateu poderia dizer ao crédulo para fazê-lo desacreditar ou abandonar sua fé (ou vice versa)? Essa pergunta parece supor, ou melhor, ignorar, o caráter distintivo que a fé (ou a falta dela) desempenha na vida das pessoas. Ao supor que a possibilidade de convencimento ou de falseamento se estende a todas as ocasiões, o que se desconsidera é o caráter estruturante das proposições nas quais poderíamos representar as nossas crenças mais elementares. Essa mitologia fundante é o atestado de que nossa vida não se organiza em função do conhecimento de verdades, mas que a própria possibilidade de conhecimento está ancorada em certezas fundamentais que estão elas mesmas imunes à objeção (pois nós não as apreendemos através do conhecimento). São rochas duras e intransponíveis.

Crédulos e crentes não estão mais apegados às suas certezas que cientistas, aliás, não se trata de diferenciá-los por uma disposição ao convencimento (ausente em um, presente em outro). Em certo nível, ambos estão igualmente inclinados a rejeitar mudanças e é preciso que seja assim. O esclarecimento desse aspecto é de fundamental importância para abrandar o uso político da ciência que ora parece justo e adequado para nos proteger de aparentes obscurantismos residuais (?) que grassam pela nossa sociedade, mas amanhã (ou hoje mesmo) pode ser a semente de uma futura tirania, mais poderosa que a da própria Igreja.

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