Freud e a Religião

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Mesmo os que olharam com desconfiança para a psicanálise não deixaram de reconhecer na literatura de Freud a expressão de uma habilidade singular com a palavra. Seus usos conceituais são frequentemente claros — embora o grandioso desenvolvimento deixe lacunas inegáveis — ao mesmo tempo em que há um forte apelo retórico na articulação das suas idéias. Tudo isso faz dos textos freudianos fonte de enorme prazer. O mal-estar na Civilização é um bom exemplo. Embora não seja o cânone freudiano acerca da religião (que geralmente se identifca em O futuro de uma ilusão), ali se encontram algumas passagens entre precisas e engraçadas. Vou recortar alguns dos fragmentos que eu gosto a fim de estimular a leitura desse texto.

O primeiro diz respeito a uma análise econômica dos investimentos de energia envolvidos na religião. Freud diz no final da segunda parte do texto:

A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante – maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos “desígnios inescrutáveis” de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou.

Se o mundo é fonte inevitável de sofrimento e se não há “regra de ouro” na busca pela felicidade, tudo que a religião pode oferecer é uma submissão incondicional. Quem está disposto a se submeter incondicionalmente não precisa “efetuar o détour” religioso, basta que se conforme com o curso natural das coisas. Brilhante! O segundo fragmento comenta o mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”:

Essa exigência, conhecida em todo o mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o cristianismo, que a apresenta como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é decerto excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda era estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como se a estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de surpresa e perplexidade. Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima me impõe deveres para cujo cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma maneira. Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (self). Terei ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento que este sentiria se algum dano lhe ocorresse seria meu sofrimento também – eu teria de partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for um estranho para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, ou por qualquer significação que já possa ter adquirido para a minha vida emocional, me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo assim, pois meu amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão. Se, no entanto, devo amá-lo (com esse amor universal) meramente porque ele também é um habitante da Terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que só uma pequena quantidade de meu amor caberá à sua parte – e não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável? (…) Na verdade, se aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu próximo como este te ama’, eu não lhe faria objeções.

O texto é divertidíssimo. Embora os fragmentos sejam longos — aqui eu apenas fiz recortes –, a argumentação é bem detalhado e examina até a exigência de se “amar os teus inimigos”. Mas continuemos no mesmo rumo:

O mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente inimizade; simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião para a inimizade.

Kant também compreende assim o papel da competição no desenvolvimento humano em sua Idéias sobre a história universal sob o ponto de vista cosmopolita. Aliás, a psicologia de grupo de Freud parece se articular inteiramente sobre essa tese. Ele continua mais adiante:

É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os espanhóis e os portugueses por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e os escoceses, e assim por diante.

Ele segue examinando aspectos estreitamente relacionados à psicologia de grupo durante as próximas passagens. Na oitava parte, sentencia:

O mandamento “Ama a teu próximo como a ti mesmo” constitui a defesa mais forte contra a agressividade humana e um excelente exemplo dos procedimentos não psicológicos do superego cultural. É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta atenção a tudo isso; ela meramente nos adverte que quanto mais difícil é obedecer ao preceito, mais meritório é proceder assim. Contudo, todo aquele que, na civilização atual, siga tal preceito, só se coloca em desvantagem frente à pessoa que despreza esse mesmo preceito. Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade! A ética ‘natural’, tal como é chamada, nada tem a oferecer aqui, exceto a satisfação narcísica de se poder pensar que se é melhor do que os outros.

É verdade que Freud tem uma crença quase cega na ciência, mas sua investida contra a religião não é por isso menos divertida e destruidora. Coloco a disposição de vocês, queridos amigos, o 21º volume das Obras Completas de Freud, que contém O futuro de uma ilusão e O mal-estar na civilização entre outros bons textos. É a mesma tradução que consta na edição da Imago, com os mesmos erros e passível de severas críticas de tradução. Mas aqui queremos apenas nos inteirar de alguns tópicos do pensamento de Freud e pra isso podemos ignorar tais observações.

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