Caso deferida a ação de inconstitucionalidade, será aberto um precedente para que outras ações paralisem o trabalho de manipulação de células embrionárias. As clínicas de reprodução podem ser o novo alvo. Ora, pau que dá em Chico dá em Francisco. Jornal de Valor:
Segundo a lei aprovada, as pesquisas só podem ser feitas com embriões descartados (isto é, aqueles que não servem para ser implantados em ovários) por clínicas de reprodução humana e naqueles congelados há mais de três anos, e desde que com autorização dos pais.
Descartar embriões é crime tanto quanto usá-los em pesquisas — para um lei que julgue procedente a ação de inconstitucionalidade em causa. Portanto, a demanda tem longo alcance e essa variável precisa ser considerada pelos magistrados do STF.
A vida tem início da concepção, diz a Igreja. Para alguns cientistas ela começa com as primeiras atividades cerebrais. A discussão não se dá no terreno do certo ou do errado, do verdadeiro ou do falso — a menos que se queira retroceder décadas e, com os positivistas, afirmar que a legitimidade dos enunciados científicos repousa na possibilidade de verificação dos seus componentes elementares. Para dizer o que é ou não é a vida, o que está ou não vivo, exige-se que o debate sobre o conceito de vida já tenha cessado. Toda positividade nessa matéria resulta de já se ter adotado um dos dois lados, ou qualquer outro. Por isso a discussão toma rumos nebulosos quando os cientistas tentam pintá-la com as cores da objetividade. Todo o arsenal teórico e o esforço descritivo empreendido por profissionais de medicina, genética, bioética, neurociência, antropologia, convocados para a primeira audiência pública do STF, não pode resolver uma questão que não é descritiva, mas normativa.
Imagine um sujeito egresso da periferia de Chorrochó do Barro Dentro, analfabeto e obtuso, agora imagine-o diagnosticando uma doença pulmonar qualquer através de uma chapa de raio X, imagine-o descrevendo as aspectos que o levaram ao diagnóstico. Impossível! Quem nunca teve acesso às normas teóricas não sabe o que procurar numa chapa de raio X, mal vê, como eu e todos os que não dominam o saber médico, a forma humana externa com a qual estamos familiarizados. Quem crê que um geneticista pode nos mostrar o que é a vida, crê que um sujeito obtuso e iletrado pode ler um chapa de raio X sem dominar as técnicas médicas, crê que a experiência nos dá as formas elementares do conhecimento, sem intermediários. O problema dessa perspectiva é que ela atribui a ciência o status de ditadora exclusiva das coisas humanas, porque suas afirmações estão ancoradas numa base empírica universalmente válida. A validade dos enunciados científicos não é universal, tampouco ela colhe sua força de bases empíricas verificáveis. Ao contrário, seu desenvolvimento define seu objeto. A teoria médica define a experiência de um médico frente a uma chapa de raio X de sorte que, vendo o mesmo que todos nós, sua experiência, porém, não é a mesma que a nossa. De igual modo, a estrutura científica define e exige uma concepção de vida, a coerência interna do sistema exige que essa peça seja de tal e tal natureza — e não uma outra, a questão do conceito de vida responde a uma exigência sistêmica. A vida, no sistema científico, precisa ter o status de um postulado, de uma norma — que flutua ao sabor do desenvolvimento teórico. Portanto, o papel dos profissionais convocados para audiência pública deveria se limitar à exposição dos interesses e consequências que uma barreira externa poderia provocar no desenvolvimento da pesquisa científica. Duvido muito, porém, que tenha sido essa a função efetivamente exercida.
É temerário que a ciência assuma o papel que antes cabia a Igreja, neste caso teremos saído da cruz direto para a caldeirinha — ou pior. O tom com que se rechaça o a priori religioso dá a entender que as pessoas pensam que a ciência lê o mundo como ele é, que há um objeto que se contrapõe ao sujeito científico e que a legitimidade do que diz o sujeito expressa a correspondência entre suas idéias e a coisa a qual ele se reporta. Imensa bobagem que nos põe reféns da ciência. A ciência, digo mais uma vez, forja seu objeto — e a vida, nessa questão particular, é regra pela qual ela organiza determinadas experiências. É a norma que deve anteceder toda experiência e que portanto não pode ser verificada na experiência. É a regra pela qual se diz o que é certo ou errado, verdadeiro ou falso — ou o absurdo — e que não pode ser dada pelo objeto sobre o qual incide, mas antes têm que estar no domínio de quem a opera, da mesma forma que, antes de ter a experiência de um raio X como um instrumento pró-diagnóstico, é preciso dominar uma técnica médica particular (do contrário, a chapa de raio X não passa de agregado disforme que lembra algo da nossa forma externa).
Eu creio que a ação será indeferida, infelizmente, não pela compreensão do lugar da pesquisa científica, dos obstáculos que o deferimento introduziria e da derrota que seria imposta, em caso contrário, ao interesse público, mas pela força com que se crê na ciência e pelo açodamento com que se julgam obscuras as matérias religiosas. No final das contas, ciência e religião aproximam-se mais do que se distanciam.
Ver também: Considerações sobre o aborto