Abusos de poder

A

Em face da precariedade da comunicação pública brasileira diante de sua função política privilegiada, mediadora entre o exercício do poder (através dos representantes e encarregados) e os que lhes conferem legitimidade (o povo, em geral), um blog pode tornar-se uma ferramenta nociva.
Como já fiz notar aqui mesmo, nem sempre (ou quase nunca?) um espaço jornalístico instalado num renomado veículo de comunicação preza pelo rigor na apresentação de suas idéias e opiniões, ao contrário, a ambiguidade recorrente aliada à falta de rigor invariavelmente contribui para que uma imagem seja estabelecida sem que seus fundamentos sejam razoavelmente determinantes.
A flexibilidade, o dinamismo e a indepedência de um blog aprofundam a nocividade deste uso do espaço público de comunicação. O objeto em questão é uma coluna do Ricardo Noblat chamada Quando a Justiça se recusa a enxergar (recomendo que todos leiam para melhor entender o contexto). A coluna trata da libertação concedida por um juiz da vara federal aos 32 integrantes do MLST que ainda estavam presos. Razoavelmente ele passa a examinar o argumento do juiz, bem como os fatos que depõe contra ele. Suas observações parecem sensatas e ao final ele afirma que o ouvidor Gercino José da Silva foi o responsável pela falsa informação de que os MLST teria agendado um audiência com o presidente da Câmara. Concluimos a partir de então duas coisas: num processo judicial toda informação deve estar adequada num documento que ateste a informação e a identidade de quem a profere, neste caso o ouvidor estaria sujeito às sanções referentes a uma grotesta manipulação de informação, por outro lado seria relativamente fácil demonstrar que não figurava na agenda do presidente nenhum compromisso com o MLST — portanto o jornalista pecou ao omitir se informação foi mesmo confirmada, o que daria maior legitimidade ao seu argumento.
Contudo, foi somente quando saiu do horizonte dos fatos é que ele comprometeu seu raciocínio:

Ao interferir em favor dos presos, o Ouvidor desrespeitou o Código de Processo Penal. É impensável que tenha procedido assim à revelia dos seus superiores. De resto, o líder do MLST é amigo e já foi hóspede de Lula na Granja do Torto.

Não há menção à lógica que decreta a impensabilidade, o que me leva a pensar que estamos todos coagidos a conhecer o que Ricardo Noblat acredita ser impensável. A ausência de uma explicação se deve talvez a fragilidade sob a qual ela viria arvorado, se viesse, ou a comodidade que sua ausência proporciona para que a partir da frase seguinte se instale um clima de relação indireta com o Presidente da República: “De resto, o líder do MLST é amigo e já foi hóspede de Lula na Granja do Torto
Quando uma relação entre dois ou mais eventos distintos pode ser presumida de modo tão irresponsável (em contradição com a minuciosidade exposta no momento anterior do mesmo texto) fica a impressão de uma intenção implícita: manchar a imagem do presidente. De resto, tendo relacionado despretensiosamente o procedimento indevido do ouvidor à hospitalidade do presidente ao líder do MLST, ele está livre para concluir:

Nada demais em um país cujo presidente é capaz de ignorar pequenos e grandes crimes tramados a poucos metros do seu gabinete

Com isto observamos que os abusos não se restringem a esfera institucional, portanto, volto a questão central das minhas preocupações quanto à corrupção da comunicação pública: se no mundo ideal nós podemos sonhar com uma reforma política e institucional que torne todos os processos que lhes digam respeito, transparentes, não há uma só ação de mesma natureza que coaja a imprensa a governar-se segundo um limite preciso de ética e responsabilidade. Portanto podemos imaginar que as distorções daquilo que muitos imaginam ser “fatos” terão garantidos muitos anos de próspera longevidade. Está garantida que a legitimidade de um sentimento de indignação criado por um fato X seja estendida a um fato Y pela similaridade habilmente observada por aqueles que se interesse por esta distorção, a despeito das reais referenciais e procedimentos adequados a dois casos diversos. O método escrupuloso de examinar um objeto pode velar interstícios sob os quais se arranjam os descabimentos que gozam do mesmo sentimento despertado por todas as suas partes, como se fossem contínuos. Converter um acidente numa regra ou imaginar que uma propriedade é suficiente para se estabelecer uma lei pode ser a origem de um preconceito ou algo ainda mais nefasto.. mais uma vez, precisamos estar atentos a tudo isto.

Ricardo Noblat – Quando a justiça se recusa a enxergar
(a coluna está um pouco abaixo do início da página)

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