A gente também se fortalece

A gente também se fortalece.
A gente dá energia uns aos outros.
A gente encoraja, a gente nutre.

É difícil acreditar nesse conjunto de proposições. Quem pode olhar o mundo e dizer que nós nos fortalecemos, dizer que isso é verdade? Acho facilmente defensável a ideia contrária, de que nos enfraquecemos. Acho facilmente defensável a ideia de que nos apequenamos, nos humilhamos, amendrontamos uns aos outros. Somos um peso, um fardo uns pros outros. Nós nos enfraquecemos! — eu diria, definitivamente. (Qualquer pessoa que espere sempre o pior do ser humano tem a seu favor fartas razões.) No entanto, não é como se a constatação do fato de que nos enfraquecemos impedisse que a gente também pudesse se fortalecer. Temos também essa capacidade, ela só depende da atitude de cada um. Mas como podemos nos fortalecer? Há muitos modos de nos fortalecermos, eu falo aqui sobre apenas um desses modos, a hospitalidade.

A primeira vez que estive na Galícia nós chegamos em Marin quase onze horas da noite. Estávamos mortos de fome depois de 6h viajando de carro. Por sorte encontramos um mercadinho que fazia às vezes de bar, lá dentro havia o suficiente para gente preparar um jantar rápido. Entramos eu e Jana e topamos com um camarada careca que trabalhava lá, falando num sotaque que até então eu não conhecia. Parecia muito um amigo argentino que temos em Madrid e eu perguntei sem pensar: “você é argentino?” Um milésimo de segundo depois me dei conta de que não seria absurdo imaginar que alguém pudesse tomar essa pergunta como uma provocação. Eu confesso que sou uma pessoa demasiadamente maldosa, mas não gasto minhas palavras, o verbo que me foi soprado pelo próprio Deus, usando identidades nacionais como formas veladas de ofensa e provocação. Menos ainda a amada identidade argentina, à qual sinto tanto dever. (Dever não é bem a palavra, mas vamos ficar com ela de momento). Por sorte ele tampouco tomou minha pergunta como signo de outra coisa que não a mera curiosidade. Conversamos um pouco, ele foi muito gentil, nos falou sobre alguns produtos e, ao final, compramos uns bonitos dentes de alho e um chorizo galego. Nos despedimos e enquanto eu caminhava em direção à saída vi um queijo que parecia muito o queijo coalho, que comemos na Bahia — e eu morrendo de vontade de comer um queijo coalho. Perguntei a ele que queijo era aquele e expliquei a razão da minha pergunta. Depois de saber que não era o que eu esperava, me despedi mais uma vez e ele pediu que eu esperasse. Entrou por uma porta e logo voltou com um pedaço de papel alumínio, cortou um naco generoso do queijo e me deu. Eu fiquei embasbacado, agradeci como pude, me esforçando por demonstrar meu apreço pela sua ação, mas estava meio sem graça.

Uma pessoa não pode ser hospitaleira se praticou a hospitalidade apenas uma única vez na vida, como diria o velho Wittgenstein:

Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (costumes, instituições)

Wittgenstein, investigações filosóficas § 199

O que faz a hospitalidade é o hábito de acolher calorosamente. É certo que esse gesto foi apenas um entre tantos que certamente existiram no passado e existirão no futuro. Para esse bom camarada, não havia ali nada que fosse digno de ficar na memória, era apenas um dia qualquer da sua vida, como os outros dias. (Ele seria, nesse dia, quem ele sentia que devia ser todos os dias. Se ele fosse hospitaleiro como foi conosco, isso significa que boa parte do seu dia seria preenchido com essa atitude. Ele era moldado pela hospitalidade. O hábito do cachimbo deixa a boca torta. A gente também pode ser moldado pelo melhor. O cachimbo é apenas um instrumento que ilustra a força do hábito na formação intelectual humana.) Mas não era disso que eu estava falando, eu tava falando de como aquele gesto era para ele tão natural. Eu, por outro lado, naquele momento, senti como se fosse plantada uma semente no meu coração. Na certa porque eu sou ridículo e piegas — é verdade! — mas isso não tira a força simbólica do fato. Eu entendi a força da ideia, da hospitalidade. Da ideia não! — da prática da hospitalidade. Entendi o que ela tem de caloroso e justo, o que ela tem de forte. A hospitalidade é uma força ancestral que nos atravessa, que nos permite que nos reconheçamos uns nos outros. Que vejamos nossos longos, longuíssimos laços. Não dá pra esquecer o que disse Mandela sobre Ubuntu:

Talvez nunca pudesse reconhecer a força da hospitalidade se não tivesse me criado na cidade negra da Bahia e se essa semente não tivesse encontrado um solo em que medrar. Não tô dizendo que não existe em São Paulo pessoas hospitaleiras, eu sempre tive a sorte de encontrar em minha terra pessoas muito queridas. Seres humanos que são o melhor da nossa raça, se é que isso ainda significa alguma coisa. Tem significado muito pouco! Mas é que na Bahia as pessoas podem ser muito receptivas. Há muito de alegoria, muito de broma, mas há também muito de verdade na fantasia. A hospitalidade é uma tendência à amizade, ao entendimento de uma pluralidade, uma pluralidade que não se reduz a nenhuma identidade e que não pode ser instrumentalizada por o que ela tem de coeso, pela sua unidade. A hospitalidade é esse embaralhamento constante pela influência da diversidade, o saudável apagamento da identidade pela força da miscigenação. (É nesse sentido a anti-pureza.) A estabilidade da identidade, que nunca pode ser apagada, dá lugar a uma instabilidade constante (que não se estabiliza) que pode ser usada para compreender o diferente. Que pode ser usada para se tornar o diferente, pra mudar de pele. A estabilidade da identidade gera inevitavelmente uma resistência à mudança, dá lugar ao narcisismo das pequenas diferenças, mas sem a estabilidade da identidade nós tendemos à loucura — ao afastamento, à ruptura com a comunidade de acordos entre seres humanos. A tendência à amizade é a uma das melhores disposições humanas, ela é imensamente poderosa e nos fortalece. Na Bahia, a qualquer instante a gente pode conhecer novos amigos, ou virar instanteamente melhor amigo de alguém.

Eu acho que nós tendemos a acreditar que somente a dor se fixa na memória, como se tivéssemos sempre que nos valer disso. E por essa razão, hoje, parece tão importante lembrar do que nos fortalece e nutre.

Talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” — eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra.

Nietzsche, Genealogia da moral §3

Como se as coisas só pudessem ser fixadas em nós por meio do medo e do fogo e só tivéssemos a nossa disposição uma pedagogia da dor. Também podemos integrar, absorver e aprender com o amor e a amizade, com a generosidade, com a hospitalidade, embora predomine o medo de parecer ingênuo ao acreditar nessas coisas. Acreditar que podemos nos fortalecer, dado que parece tão fácil constatar que nos enfraquecemos, é o tipo de mentalidade que condenamos justo porque aparentemente não oferece nenhum modelo prático de ação (política e ética). Mas como nos lembrou Mandela, como nos lembra Carlos Taibo, não há somente romantismo ingênuo em acreditar que podemos agir de outra maneira em relação aos outros. Essa atitude é também parte da nossa história, da história de tantos povos tão diferentes espalhados pelo mundo, e ela não pressupõe a crença tola na prevalência da bondade, mas aceita as recônditas reentrâncias da alma humana sem ilusão. Aceita porque reconhece em si mesmo as sombras dessa alma.

Eu queria saber escrever mais sobre a hospitalidade e sobre outros modos de fortalecer, já escrevi algumas coisas sobre a amizade e o amor, mas talvez convenha ler sobre a hospitalidade alguém que eu nunca li, Jacques Derrida (é uma pena que o texto esteja fechado, ele me inspirou a vontade de ler o que Derrida escreveu sobre hospitalidade). Um dia talvez eu possa voltar a esse tema com algo mais substancial a dizer, ele me merece nossa atenção.

Ter a alma intacta

You got your soul intact, oh, and that’s a fact

A inferioridade atribuída aos negros ao longo de séculos tem um efeito nefasto sobre a auto-estima e o valor que as pessoas atribuem a si mesmas. Para remediar esse efeito a cultura negra criou sabiamente meios de estimular o amor dos negros por si mesmos e, no caso particular da cultura norte-americana, esse esforço deu lugar a uma tradição que chega até os nossos dias. A tradição de lembrar do próprio valor e de não deixar que preconceitos impeçam alguém de shine your light on the world. Espíritos iluminados com o de Aretha Franklin, ou Nina Simone, cantam e estimulam jovens a enfrentar com coragem o desafio de encontrar seu próprio valor numa sociedade que insiste em repetir, nas mais variadas circunstâncias, que eles não tem qualquer valor. Há poucos desafios mais difíceis do que o de acreditar no seu próprio valor quando tudo ao seu redor parece afirmar o contrário.

Shine Your Light on the World: Sonic Visionaries in African American Music

É comovente a tentativa de fazer as pessoas se emanciparem de um dos efeitos mais profundamente arraigados da escravidão, a servidão mental aos valores e ideias dos senhores de escravos. É verdade que a escravidão mental de que fala Bob Marley não é mera consequência da escravidão, mas sintoma do desprestígio da reflexão e do pensamento, ideias precursoras de muito do que há de mais valioso na cultura ocidental. Mas isso é especialmente difícil para aqueles que são lembrados continuamente de que devem permanecer nos seus lugares e de não podem ansiar nada além do que é adequado e condizente com sua condição inferior.

A disposição para infundir coragem e ânimo (lembremos que ânimo vem de anima) nos outros é marca dos espíritos fortes, daqueles que não se sentem ameaçados pela força e inteligência dos outros. Dos que não se empobrecem ao conceder, dos que tem uma outra ideia de força. É preciso ter a alma intacta para emancipar-se das próprias dificuldades e da tendência ego-centralizadora da mentalidade capitalista e se dispor a ajudar os outros a encontrar sua própria força.

A mais bonita cena de BlacKkKlansman, de Spike Lee, é quando Kwame Ture se dirige aos estudantes universitários num discurso contundente e cheio de espírito. Um novo pensamento exige que assumamos a tarefa de determinar novas regras e novos valores, e de suportar com determinação a resistência e a hostilidade que toda novidade deve enfrentar para provar sua força. E o final é apoteótico: all power to all the people.

Uma ideia de força

Bondade é força, generosidade é força. A ideia de força que parece prevalecer atualmente se liga à ideia de acúmulo: acúmulo de dinheiro, de poder político, de saúde, de influência, de atenção (engagement talvez seja a palavra mais adequada). Tudo pode ser acumulado e tornar-se fonte de força e poder. Quem caminha no sentido contrário não tem como meta a acumulação, mas a concessão, a dádiva — que se opõem à acumulação. A mesma dádiva que nos alimenta quando podemos receber os amigos e amigas (e os amores), ouvi-los, fazê-los mais alegres. Uma vontade de servir, servir de bom grado, uma alegria em servir. Algo muito diferente do gosto por ser servido que manifestam os acumuladores (especialmente no Brasil, onde o fetiche de ser servido é marcante na vida social). Mas a força da dádiva é exigente, exige um tipo de capacidade aparentemente sem valor simbólico, mas que não podemos deixar de reconhecer quando sentimos sua presença. É preciso excesso pra ter essa força. Ou melhor, essa não é uma força que se pode ter ou possuir, porque toda força que se deixa possuir é limitada pelo capacidade do portador. Como se o portador de um poder ou de uma força fosse um recipiente com um/a limite/capacidade de acúmulo e armazenamento. A força da generosidade consiste precisamente em que ela não seja acumulativa e, portanto, não sofra com os limites de um portador (recipiente) limitado. O poder que não se pode portar é muito maior que qualquer poder que se pode acumular. Pra participar desse poder precisamos ser pessoas que não se tornam pobres, por mais que concedam. A força da dádiva é a força da amizade, da partilha, do entendimento que transcende quadros normativos.

Curiosamente, é o mesmo tipo de força que move a luta pelo conhecimento livre.