Beijos roubados

Uma cultura de respeito à mulher não implica que cada beijo tenha que vir antes precedido pela pergunta: “Posso te beijar? Por favor, manifeste o seu consentimento verbalmente” — isso é ridículo. Em certo sentido, grande parte dos beijos são beijos roubados, pois supõem uma aposta (e um risco) sobre o desejo do outro, aposta que, naturalmente, não está imune ao erro. Não se trata de transformar todo homem num robô obrigado a seguir a regra: “não se deve fazer nada com as mulheres sem o seu expresso consentimento”, se trata de construir nos homens uma sensibilidade com respeito às mulheres de tal modo que eles saibam quando ou se roubar um beijo.

Quando se acredita tão cegamente na intimidação e na punição como instrumentos de transformação social fica difícil fazer entender certas zonas de sombra, zonas especialmente ligadas ao sexo (desejo), como o lugar do poder e do que poderíamos chamar de invasividade. Mas quem pode negar o papel desses elementos?

Suficiência e sobriedade

Eu escrevo na condição de uma pessoa completamente vendida ao capitalismo, como alguém doentiamente vaidoso, que aprecia sem reservas todas as experiências e serviços, os sabores e gostos, as texturas, os mimos, todas as delícias e os confortos do capitalismo: isso aqui é um insustentável!

Não importa como nós vamos resolver o “problema” de entregar às futuras gerações um mundo melhor, qualquer que seja a “solução” que proponhamos, ela passará inevitavelmente pela nossa capacidade de imaginar uma forma de vida orientada à suficiência e à sobriedade — e não à opulência, à abundância e à ostentação. A forma de vida capitalista é francamente incompatível com a nossa existência no planeta.

Precisamos mais do que nunca colocar a arte e o jogo (ludos) no centro da sociedade humana. Agora, precisamos mais da imaginação que do conhecimento.

Oração de um filósofo

Deus me livre de ser confundido com uma pessoa que pensa que as mulheres são menos capazes de fazer filosofia (ou qualquer outra coisa) que os homens. Deus me livre de ter que falar ou escrever todes (e coisas do tipo) para demonstrar respeito pelas mulheres ou por quem quer que seja. Eu sempre prefiro que a gente não diga certas coisas, mas as faça sentir. Respeito se faz sentir mais do que se deve dizer, o uso da linguagem é sempre atuação, encenação, e pode (eu disse “pode”) não ser autêntico, mas meramente performático.. o gosto pelas aparências não cria um mundo de respeito, mas de fingimento e hipocrisia.

As regras e as normas são menos importantes do que pensam as pessoas que querem usar a gramática como arma e instrumento numa luta política (a “esquerda”, definida conforme o peso do que se entende por esquerda no EUA — “progressistas, militantes e ativistas” —, nossa metrópole cultural e política). O importante é a prática, é o que se faz, o que se faz em cada ato, é a ética.. entende a diferença entre a mera regra (norma) e a prática? É difícil explicar, mas é só pensar na diferença entre “dizer” e “fazer sentir”.

Há pessoas que gostam e acreditam piamente nas palavras; por sua vez, outras acreditam mais nas ações. Por exemplo, qualquer pessoa pode usar palavras para dizer que gosta da gente, mas nós só acreditamos nas pessoas que podem nos “fazer sentir isso”, pois a linguagem pode ser um meio em relação a um fim (instrumento), mas um sentimento não pode ser — o sentimento é autêntico, porque não é mediado. Você pode ser enganado por uma boa performance (um ator ou um psicopata), mas não por um sentimento, um sentimento tem a força da autenticidade, do verdadeiro (querendo deixar de falar da verdade, topamos de novo com ela).

As ideias fora do lugar v2.0

O que significa conceber a contribuição do povo brasileiro (ou de qualquer povo subalterno e colonizado) para política no mundo, para uma cosmopolítica? Não podemos conceber nada, nossa imaginação parece estéril, afinal estamos muito longe — como sociedade e como estado — da invejável Alemanha, por exemplo. Não há saltos na escala do progresso, a China sabe bem disso.

Só abandonando a ideia de progresso podemos aprender com aqueles que não são ainda plenamente civilizados, com os primitivos, ou com os animais, com os que tem para nos ensinar lições sobre os limites da complexidade e o valor do simples. Não há nada mais importante que aprender o valor do simples para quem não deseja o prospecto de viver em Marte.

Pior do que o medo

Quando não sentimos que podemos forjar nossas próprias ferramentas simbólicas para lidar com o mundo sem nos sentir sozinhos (ou loucos), sem nos afastar dos outros, nós nos apegamos às tradições e ao conservadorismo, nos apegamos às regras e ao modo de lidar com o mundo que recebemos quando somos crianças, sem questioná-los. (Nos transformamos em defensores da estabilidade.) Não questionamos essas regras para nos manter confortáveis, para evitar conflitos, — não porque não conseguimos formular críticas! Nós temos poder e capacidade para questioná-las, mas não temos coragem, temos medo. E é pra ter medo! Mas pior do que o medo da loucura e da solidão é a perspectiva de passar toda a vida dentro de uma mesma pele, sem nunca ser capaz de (ousar) mudá-la.

Sobre os eruditos

O erudito é um sujeito apegado ao quantitativo. Quanto mais melhor! E a complexidade que esse acúmulo quantitativo instaura na cabeça do erudito — especialmente se o que se acumula é variado e plural — é inapreensível por outros indivíduos. Isso significa duas coisas: 1) que todo julgamento sobre o pensamento alheio é necessária e inescapavelmente injusto e 2) que facilmente se pode esconder falsidades e coisas mortas sob o véu de um bem recortado painel de autoridades e citações.

Há muitos vazios desonestamente camuflados desse modo. A erudição costuma abrigar pessoas desonestas, com os outros e consigo mesmas.