Nos dias de hoje, apesar da independência operacional relativa aos robôs e autômatos em geral, nunca conheci quem tivesse atribuído a um aparelho o sucesso pela realização de uma determinada ação ou execução. Isto porque embora eles sejam peças indispensáveis para que se realizem certas tarefas, seu funcionamento e consequentemente seu sucesso depende da engenhosidade do criador ou da habilidade do operador. Quanto mais eficiente uma máquina, mais precisamente ela executa uma dada função. Não obstante o empenho com que alguns segmentos da ciência se esforçam para minar a noção de liberdade, ela continua sendo uma realidade factual para nossa vida prática. Isto implica dizer que o homem ainda conserva uma diferença substancial em relação às máquinas: a autonomia da sua vontade. Não quero dizer que a influência ou a possibilidade de se dispôr de modo heterônimo sejam perspectivas vetadas, mas que, apesar disto, ainda resta em nós um quê de consentimento mesmo numa posição de subserviência e heteronomia.
Decerto o vínculo entre a idéia de Responsabilidade Social e os aspectos antes abordados não estão claro, passo a elucidá-los. Para determinar o valor de uma atidude humana é fundamental descobrir ou pressupôr a intenção (liberdade) a ela relacionada. Se eu piso acidentalmente numa mão estirarada no degrau de uma escada, para quem sofreu o pisão é fundamental saber que minha atitude não foi intencional, para isso milhares de anos de evolução nos dotaram de um inventário de mimicas e gesto que fazem parte da nossa atuação social cotidiana através dos quais eu exprimo que meu ato foi acidental — do contrário eu poderia provocar uma atitude imprevisível por parte da vítima, se ela imaginasse que minha ação foi intencional. Esta possibilidade de atribuir a uma ação ou evento uma dicotomia semelhante à acidentalidade e intencionalidade apresentada é característica de um ser provido de liberdade. As empresas não têm liberdade, seu funcionamento está condicionado a lógica do capital e uma das principais regras deste regime prescreve que a qualquer custo é preciso manter o equilíbrio financeiro no intuito de garantir a existência da empresa ou organização. Somente escamoteando este mecanismo podemos falar de Responsabilidade Social.
Quando a primeira empresa reconheceu que investir no ambiente de trabalho, na relação entre o empregado como força de produção e o ambiente de trabalho como instrumentos de produção, poderia aumentar significativamente sua produtividade e por consequência acrescer seus lucros num vetor que lhes permitissem equilibrar e superar os gastos iniciais necessários a tais mudanças, consolidou-se a perspectiva gerencial que fomenta os estreitos laços hoje acalentados por especialistas em recursos humanos. No caso em questão, observando que a predominância do capital financeiro sobre o capital produtivo é o horizonte destas mudanças, quando a primeira empresa percebe que o investimento em ações sociais pode lhe render destaque e benefícios em matéria de imagem inalcançável por qualquer outro meio — publicidade, a via comum — nasce a Responsabilidade Social nas empresas.
Por consequência, o termo responsabilidade, que constitui a expressão, é de uso impróprio e tem clara intenção de estabelecer um vínculo afetivo semelhante a tentativa promovida pelas campanhas publicitárias. Responsável é aquele que responde pelos seus atos. Uma máquina não é responsável, ela não responde pelos seus atos porque estes estão prescritos na sua criação ou operação, embora ela possa produzir efeitos que reclamem responsabilização. Quando por exemplo, uma falha mecânica produz um acidente qualquer. Os responsáveis pela manutenção e conservação podem ser chamados a prestar esclarecimentos. Contudo, nunca sequer imaginamos responsabilizar a máquina pelo acidente — cabe salientar que o fato de ser possível dizer que tal acidente foi provocado por falha mecânica, isto não significa atribuição de responsabilidade (culpa), mas apenas atribuição de causa. O mesmo, porém, não acontece nas empresas, embora o seu funcionamento aconteça de modo semelhante ao das máquinas. A determinação da empresa é a mesma: um fim, um produto, um ponto futuro qualquer — a diferença está nos meios e instrumentos para se alcançar este fim. Enquanto os mecanismo de um aparelho funcionam quase exclusivamente através de material mecânico, engrenagens, engenhos que se misturam e o põe em funcionamento, as peças da empresa são fundamentalmente humanas (mesmo quando gerenciam ou supervisionam máquinas) e sua engrenagem, ou aquilo que equivaleria a ela, são mecanismo abstratos, lógica de mercado, de consumo, regimes tarifários, etc. Para lançar mão de um exemplo ilustrativo peço que imaginem o sentimento que eu provocaria em alguém que me visse ajudar um cego ou uma idosa a atravessar a rua, talvez respeito ou admiração, imaginem agora o que esta mesma pessoa pensaria de mim se soubesse que a cada gesto semelhante eu recebo 10.000 doláres. Dúvido que fossem pensamentos nobres. Nem aos homens, livres e cuja liberdade é pressuposta em lei, atribui-se qualquer tipo de valor positivo quando se sabe que seus atos são meios para um fim. Como no exemplo dado, meios para se conseguir 10.000 doláres. No caso de máquinas ou sistemas heterônimos, como as empresas, é ainda mais absurdo uma atribuição como esta. Que sentido há em imputar responsabilidade a uma empresa cuja ação responsável é orientada exclusivamente pelo acréscimo de lucros ou benefício relacionado à associação da sua imagem a uma idéia de reconhecimento social, ou desenvolvimento sustentável, ou qualquer outro aspecto positivo da convivência social?
Esquecer esta impropriedade é tudo o que querem seus diretores e donos, contudo, para esquecer é preciso lembrar e não tenho dúvidas de que esta distinção é demasiadamente sutil para surgir diante dos olhos de tanta gente desatenta. Que você, caro leitor, não seja um deles.