Cumplicidade não é o mesmo que intimidade

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Quando o que chamamos Brasil tinha pouco menos de 50 anos, Étienne de Boétie escreveu um texto conhecido como “Discurso sobre a servidão voluntária”, e pra mim o significado da ideia de cumplicidade se elucida aí quando ele fala da relação entre maus, do temor mútuo entre eles:

A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama. A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade. O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância. Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça. Quando os maus se reúnem, fazem-no para conspirar, não para travarem amizade. Apóiam-se uns aos outros, mas temem-se reciprocamente. Não são amigos, são cúmplices.

Étienne de la Boétie, Discurso sobre a servidão voluntária

Cumplicidade e intimidade não são a mesma coisa, mas desde que as pessoas resolveram normalizar a fofoca e a crítica banal como modo de criar laços rapidamente, uma coisa passa pela outra não raras vezes. Jaron Lanier fala de como os sentimentos negativos geram respostas mais rápida e, portanto, maior engajamento, por isso o discurso de ódio é tão bem-sucedido na web. Algo parecido acontece também nos laços humanos, alguns se estabelecem de modo mais rápido e fácil, como aquele que se cria entre duas pessoas que falam mal de outras. Eu escrevi isso em minha sociologia da fofoca.

Para as novas gerações, que aprendem a necessidade de criar uma persona por meio de avatares digitais, é especialmente mais difícil expôr-se. “Abrir-se ao outro” tornou-se apenas exibir e editar seletivamente nossa vida e nossa privacidade para os outros em redes sociais. — Qual é então a diferença entre cumplicidade e intimidade? A diferença é precisamente a falta do medo e do temor a que se refere La Boétie quando fala dos maus. A intimidade é um laço e uma conexão mais profunda, que pressupõe que estejamos desarmados ante o outro, não porque esse outro é inofensivo, ao contrário, quase poderíamos dizer que nos atrai precisamente porque ele pode nos ferir. Vulnerabilidade é estar desarmado, exposto, frágil, ante alguém com quem estamos à vontade e nos sentimos bem de aparecer assim como nós realmente somos, sem máscaras. E é desse modo que, pouco a pouco, vamos aprendendo a viver sem as máscaras, aprendendo a ser quem nós somos, a descobrir quem nós somos.

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