Ode ao conformismo e à estabilidade

O

spoilers. spoiler e mais spoilers de Past Lives

Vi o trailer de Past Lives em maio (o filme foi uma sensação no festival de Berlim) e esperei ansioso até agosto para assisti-lo. Mas depois que assisti, confesso que fiquei um pouco decepcionado. O filme é bonito, bem feito, a fotografia de Seul é linda, mas não gostei do modo como a premissa foi realizada (o que não significa que o filme seja ruim).

Talvez o que eu não tenha gostado no filme seja a consequência da falta de um amor entendido como coisa do corpo. Amar é querer estar perto, é proximidade, contato e toque. Na primeira despedida entre eles, quando ela vai embora da Coreia do Sul, já dá pra ver uma falta de proximidade que me desconcerta e aflige, mas que em alguma medida era natural, pois eles eram jovens. No entanto, no cartaz no filme, aparece a cena simbólica em que eles estão próximos dentro do metrô e suas mãos quase se tocam, há uma tensão ali sublinhada de propósito. Quando eles se encontram pela primeira vez depois de longos anos, o abraço inicial parece prometer alguma coisa, embora ele pareça constrangido. Mas ao longo do filme nada se deriva dessa percepção sobre os sinais do corpo e os efeitos da proximidade entre eles.

A cena final, em que eles se despedem, é constrangedora e irritante. Compreensível, mas nem por isso menos decepcionante. Depois de décadas de amor inconfesso, ele se vê diante dela pela última vez, mais uma vez o filme realça a mudança de orientação dos seus corpos, eles estão de lado e logo passam a se olhar de frente, mas ainda assim nada parece despertar um senso de finitude e a um sentido de urgência que pudesse justificar um abraço ou um beijo roubado. Essa é uma das poucas ocasiões em que se deixa ver claramente o que já disse sobre beijos roubados: gostar dos outros é correr riscos e é arriscar alguma invasividade (que muitas vezes pode parecer violência). É verdade que eu não sou das pessoas mais corajosas que existem, mas não me interessa um filme identitário que retrate a minha covardia. E, aliás, acho que nessas circunstâncias mesmo eu teria cojones de tentar beijá-la, ainda que num ato de desespero. Mas a letargia do personagem é aflitiva. Do lado dela, é como se o sentimento pelo seu primeiro amor não existisse mais, fosse um fantasma ou algo morto, um luto a ser realizado, e a opção de meramente continuar a sua relação com o baixotinho feioso parece indicar que a mensagem do filme é uma ode ao conformismo e à estabilidade. Um apelo consolador ao mundo possível, o marido dela se torna uma Carla possível.

Provavelmente eu estou pedindo demais, o que eu gostaria que tivesse acontecido? Bem, eu gostaria que ela tivesse aceitado a instabilidade e admitido colocar na sua vida o problema aparentemente sem solução de como manter a sua relação com dois homens diferentes. — “É muito fácil sugerir que os outros aceitem a instabilidade, Leonardo!” — Claro, eu estou falando abstratamente. Eu gostaria — e essa é a fonte das minhas expectativas frustradas — que a nossa relação com a vida não fosse um mero seguir regras, mas um inventá-las, de tal sorte que, não sem atrito, abríssemos caminho a novas formas de amar, e não que tivéssemos que escolher e fazer das escolhas um altar para a melancolia de um amor não-realizado. Um amor mal-sucedido é melhor que um amor não-realizado. A opção pela estabilidade e pela convencionalidade é também a minha opção, pois sou também covarde, mas, repito, não gosto de vê-las representada assim, como um bem maior. Simplificando uma situação bem mais complicada: parece como se o filme glorificasse o amor platônico e aquilo que há de abnegado e melancólico na vida sem oferecer nem mesmo um instante de luta e paixão, sem que os impulsos do corpo — aqueles que nos compelem a tentar beijar e abraçar as pessoas de quem gostamos — tivessem oportunidade de se expressar e de tornar a vida não mais fácil, e sim mais complicada, como um problema a ser resolvido, um delicioso problema. Mas não, melhor mesmo é manter uma relação modorrenta, ter filhos, seguir o roteiro da vida e morrer. Essa perspectiva é, para mim, profundamente frustrante. — Não, frustrante é pouco, talvez me falte a palavra. Mas é certamente uma palavra que permita enfatizar, ao mesmo tempo, a ausência da vitalidade e da paixão na vida humana.

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