Sobre enganados e enganadores

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Esse post foi motivado pela conversa com Danillo Ferreira, nos comentários.

Minha ressalva ao fragmento de Serres, no post anterior, foi insuficiente. Não deixei clara minha posição. Trata-se de não aceitar a clivagem artificial entre enganados e enganadores — de perceber que nesse jogo há variáveis que não admitem ser cifradas numa configuração binária. A responsabilidade deve ser distribuída — embora não igualmente. Se o poder é asfixiante é exatamente porque ele se infiltra e instala agentes mesmo no interior mesmo dos enganados. Vejamos uma passagem ilustrativa de Lebrun:

O animal “ideológico” não é mais um néscio desarmado, cego ao seu interesse (o pobre do Discurso sobre a Desigualidade iludido pelo discurso do rico, o camponês do Dezoito de Brumário enganado por Luis Napoleão), mas um vivo calculador que, instintivamente, visa a adequar o seu ambiente ótimo, delimitar um “território” que esteja à altura de seus desempenhos. Ninguém nos afasta, tão bem quanto Nietzsche, da desastrosa assimilação de ideologia e enganação. Não há mais enganados: há, apenas, os que procuram interpretações satisfatórias.

Invertendo a ordem do texto eu recorto novamente:

Pouco importa que tal discurso seja mentiroso. O interesse é saber por que ele corresponde à demanda silenciosa dos que o adotam — como ele propicia a uma espécie o “contentamento” de ser ela mesma e de viver em tais condições.

Esta aí posto a nu o perigo de admitir o painel que Serres apresenta ingenuamente (creio que ele não se deu por isso ou ignorou para enfatizar o papel dos poderosos). Reverter o quadro que Serres esboça envolve muito mais do que alijar do poder “loucos perigosos”. Implica em formentar uma atitude política capaz de resistir à tentação da comodidade e da justificação. Do contrário ergue-se o discurso que harmoniza “condições” e “desempenhos” dos homens. Se podem consentir com um sistema capaz de prover alguma satisfação sem lhes cobrar maior dispêndio de energia, por que haveriam de preferir o caminho mais tortuoso? — eis a lógica. Por fim, não é questão de vontade, pois não se trata de saber se o povo quer (ou quis) esse armamento colossal que Serres registra, mas de afirmar que mesmo sem o querer sua atitude política é e foi conivente com essas consequências.

Isso me faz lembrar um breve comentário de Foucault, em O uso dos prazeres, sobre as castas — salvo engano, na Índia. Ele comentava que, por mais desigual que fosse o sistema, a maioria dos membros se rebelava contra a tentativa de subvertê-lo. Crentes de que a observância dos preceitos religiosos garantiria a ascensão numa próxima encarnação — por que haveriam de trocar a garantia afiançada pela fé pela contingência de um processo político de insubordinação? Vê-se que nem toda a ordem desigual é resultado da astúcia dos superiores sobre a ingenuidade dos inferiores, há uma complacência que é puro cálculo interessado e que não pode ser dispensada como elemento de análise da configuração desses cenários.

Fragmentos de “Por que ler Nietzsche, hoje?”, em Passeios ao léu.

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