Sobre a hipótese dos grampos da ABIN

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Tão logo a nova edição da revista Veja caia em domínio público eu complementarei o comentário em referência direta a fonte da denúncia. Por ora me sirvo do que está disponível na web.

Primeiro é preciso esclarecer uma coisa: a suposta denúncia de escutas telefônicas envolvendo o presidente do STF foi levantada pela desembargadora Suzana Camargo, por ocasião da prisão de Daniel Dantas. O juiz De Sanctis negou qualquer pedido de escuta. A desembargadora não deu nenhuma pista sobre a fonte da denúncia que, uma vez mencionada, pela simples menção põe em cheque a legalidade da articulação da operação Satiagraha, ou seja, interessa àqueles que querem viciar o processo. Como eu fiz notar no blog de Nassif, naquela oportunidade foi pedido aos técnicos do STF que averiguassem a existência das supostas escutas. Resultado: Varredura no STF não encontra escutas no gabinete de Gilmar Mendes, notícia da Folha. Obviamente, há um conflito de versões. Diante dela, a prudência sugere que coloquemos em suspeição a declaração de que foram encontradas escutas. Mas a Imprensa toma o viés contrário, assume como fato a hipótese e vicia a informação. Sublinho uma afirmação importante: é logicamente possível que existam escutas, e escutas realizadas pela ABIN, mas no atual contexto confirmá-las é expor sintomaticamente o interesse na consequência que ela produz, qual seja, o descrédito do processo de investigação envolvido na prisão de Daniel Dantas.

Vamos então para as sutilezas no texto da matéria online da Veja. Ele já começa dizendo a que veio:

Diálogo comprova que espiões do governo grampearam o presidente do Supremo Tribunal Federal. Autoridades federais e do Congresso também foram vigiadas.

Comprova. Espiões do governo. Veja tudo que é vendido como fato no simples sumário da reportagem. Que os elementos ali contidos são provas da existência de espiões do governo. Primeiro a condição de prova, segundo, os mandantes. Agora busque no texto aquilo que pode fundamentar esses dois elementos já apresentados antes mesmo do início. Não encontrará — pura trivialidade. O que se encontra, na verdade, é uma trama mal urdida que mobiliza adversários a fim de consolidar a tese ali exposta:

O ex-ministro José Dirceu teve seu escritório arrombado em São Paulo. Os ladrões só levaram a CPU do computador, embora houvesse outros objetos de valor. Dirceu aponta os espiões do governo como responsáveis pela invasão e acusa o ministro da Justiça, Tarso Genro, e a Abin de estarem por trás das ações clandestinas. A suspeita, gravíssima, já foi informada por Dirceu ao presidente Lula. O ex-ministro diz que foi advertido sobre a perseguição, que incluía grampos clandestinos em seus telefones e nos de seus familiares.

As relações entre Dirceu e a Veja não podem ser classificadas como amistosas. Ao mobilizá-lo na condição de vítima — do próprio governo, de seus representantes — a revista fabrica um belo álibi. Noutras oportunidades — e mesmo recentemente — notícias e hipóteses sobre o envolvimento de Dirceu com Daniel Dantas não foram descartadas. Curioso é que o mesmo governo que articula a espionagem é apresentado como vítima:

Somente neste ano, de acordo com o funcionário, apenas em seu setor de trabalho já passaram interceptações telefônicas de conversas do chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, e de mais dois ministros que despacham no Palácio do Planalto – Dilma Rousseff, da Casa Civil, e José Múcio, das Relações Institucionais. No Congresso, a lista é ainda maior. Segundo o araponga, foram grampeados os telefones do presidente do Senado, Garibaldi Alves, do PMDB, e dos senadores Arthur Virgílio, Alvaro Dias e Tasso Jereissati, todos do PSDB, e também do petista Tião Viana.

Qual é o objetivo dessa auto-espionagem?

Mas passemos aos dois personagens principais da história. Gilmar Mendes e Demósteles Torres. Gilmar Mendes, todos sabem, é personagem principal nos recentes episódios envolvendo a prisão de Daniel Dantas. Conforme alegação da Veja existe materialmente uma gravação cuja transcrição é apresentada na matéria. As partes confirmaram a conversa. É o suficiente para que a revista infira a autoria do “governo”. Essa lógica de fazer inveja a qualquer Frege e Wittgenstein é a base para a fundamentação do pedido de explicações que Gilmar Mendes pretende endereçar ao Presidente da República e ao governo:

O governo precisa mostrar que não tem nada a ver e nem é conivente com esse crime contra a democracia.

Alguém precisa explicar ao ilustre magistrado que vigora em nossa estrutura jurídica um dispositivo reconhecido como “ônus da prova”, que solicita a parte que a acusa a constituição da prova. E antes disso, é necessário reconhecer a acusação. Ou seja, é preciso, antes mesmo de provar que o governo articulou escutas, provar que elas efetivamente existiram, pois pela simples insinuação de um revista, não se pode afirmar um fato.

Todos sabem que quase todo o espectro político está envolvido no caso Daniel Dantas — embora, claro, existam em todas as partes os que não se envolveram — de sorte que esse movimento obscuro que identifica vítimas por todos os lados não parece senão um esforço precariamente articulado para desacreditar o trabalho — não de um partido em particular, embora a Veja não perca o cacoete de atribuir tudo ao governo — dos agentes envolvidos na operação Satiagraha. No final das contas, o objetivo é um só: viciar o processo.

Atualização 1: Quem quiser ler a revista sem ter o desprazer de comprá-la, clique aqui e faça o download. Ainda não tive tempo de conferir a reportagem por lá, mas pelo andar da carruagem, não há nada de novo. Qualquer novidade, me informem!x

Atualização 2: Inquérito deverá inocentar ABIN e PF:

[…] o relatório colocará em dúvida a própria realização do grampo, dada a divulgação apenas da transcrição da conversa, sem o áudio.

E quem não sabia disso? E agora, cadê a crise institucional de Gilmar Mendes?

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