Lars and the real girl

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Vocês já assistiram Dogville? Aquele filme longo e chato que esconde atrás de certos recursos inusitados uma premissa que poderia ser desenvolvida em muito menos tempo? Pois é, Lars and the real girl é sua antípoda.

Sabem, minha opinião é que o cinema não é lugar para reflexão linear, argumentativa. Por certo, há filmes excelentes que contradizem essa afirmação, mas eles são minoria. Quando assisto filmes que pretensamente sugerem reflexão desse gênero, na maior parte dos casos, eu me decepciono. Em geral, eles dizem mais sobre o alcance reflexivo das pessoas que os sugerem do que sobre o tema que pretendem tratar. A filosofia, por outro lado, tem um forte poder reflexivo. Não é que eu esteja hierarquizando domínios completamente diversos sobre a escala da reflexão. O caso é que cada um deles tem sua forma particular de nos afetar. Eu acredito que um bom filósofo é aquele que consegue enxergar as consequências, o alcance mesmo de um argumento qualquer. Ler Gerárd Lebrun comentando uma passagem aleatória de Nietzsche, por exemplo, é viver a experiência dessa visão aquilínea.

Minha opinião é de que o cinema assemelha-se à literatura. Em geral, os bons filmes não são aqueles que nos conduzem por caminhos logicamente irretocáveis, mas os que oferecem novas perspectivas, como lentes que vestimos sobre olhos por um momento e que, com frequência, deixam resíduos sobre a retina que ali permanece mesmo depois de removidas as lentes. Filmes são como metáforas. Rorty pensava a literatura de modo semelhante. Embora eu discorde do contexto e de algumas consequências envolvidas na ascensão da cultura das metáforas, da cultura literária, estou certo de que incorporar a experiência das metáforas como forma de viver novos modelos de descrição, diferentes formas de ver o mundo, produziria grandes benefícios a nossa cultura.

Por isso o cinema, como fábrica de metáforas, pode ser ficcional, como a literatura. Pode ser irreal, improvável, aparentemente ilógico. O que importa é a experiência a que ele nos conduz — a imagem que ele projeta em nossa retina. Lars é uma dessas experiências. Não genial, mas tocante. E o que há de magnífico é que sua premissa não se confunde com sua realização, como o desenho a lápis de raios de sol que se distinguem do próprio céu azul não se confunde com a experiência mesma do dia. Ele se alarga, de sorte que a melhor e mais acurada descrição não lhe é fiel. O espaço que separa esses dois domínios é onde se encaixam a interpretação do ator, os cenários, os silêncios. O que mais me agrada no filme é realmente o modo como ele se contrapõe a Dogville (aqui, uma cidadezinha onde as pessoas efetivamente se comprometem com o bem do personagem). “O inferno são os outros” e a carga cotidiana de obstáculos externos são fontes quase imperativas de enredos. Lars se distancia dessa tendência a acusar o mundo, as pessoas, a revelar a natureza humana como ela é, e se satisfaz em olhar o particular. As circunstâncias, aliás, são de todo farováveis. Tudo corre bem, não há inimigos. E assim o gesto trivial de olhar o particular revela a universalidade mais concreta e palpável que aquela natureza humana denunciada nos filmes duros e elaborados. E é esse novo olhar o que o cinema tem de bom a oferecer — na opinião de um confesso leigo. Porque, aqui, ele rompe com a tendência de mostrar a “crueza das coisas”, do mundo, dos homens, ou com a propensão a exponenciar as dificuldades externas, exigindo da trama constantes reviravoltas. A maior parte de nós sabe bem o peso do mundo lá fora e quer esquecer a crueldade dos homens, the boundless human stupidity. E então esse olhar pra dentro que transforma o exterior em cenário estático de um espetáculo que se encena ali em uma cabeça confusa, apresenta uma outra forma de enxergar a nossa humanidade. Não mais através de lentes frias e reveladoras, mas mediante uma moldura simples e limpa que talvez seja a metáfora necessária para alguma retina, ou para algum coração. Eu suspeito que o que nós precisamos mesmo é de novas formas de viver nossa humanidade, pois o cinema já nos saturou da experiência da nossa estupidez e parece que ainda sim não aprendemos. Talvez ele mesmo possa nos oferecer alternativas, ainda que modestas e despretensiosas, como Lars. Mas não é assim também com os livros?

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