Uma das mais lamentáveis características da ética bolsonarista é a sua tendência a se moldar pelo pior. A preocupação com a criminalidade e com a violência, que todo brasileiro conhece, se transforma numa justificativa para tornar o medo o elemento central da vida e da política. Daí a presença constante de conceitos como “guerra”, “armas”, a frequente necessidade de expressar hostilidade e de saber inspirar medo. O fascismo brasileiro não é assim porque a sociedade é violenta, não é uma resposta corajosa a desafios externos. A sociedade é violenta e os desafios existem, não resta dúvida, mas os fascistas se comprazem de que eles existam, pois assim têm a justificativa para guerrear agindo em nome do bem. Não lhes interessa nenhum tipo de pacificação da sociedade — muito menos uma pacificação de viés coletivista (não capitalista), que contornasse a brutal desigualdade brasileira —, pois eles precisam do medo.
Quando o medo se torna um elemento central numa sociedade, a desconfiança é apenas uma consequência. A desconfiança esgarça os laços sociais, pois as ações se veem refreadas por suspeitas que minam a autenticidade e erodem o sentimento de estar à vontade que nos permite agir com liberdade, sem receios. Se sentimos que está justificada a desconfiança em relação aos seres humanos, a confiança se transforma numa moeda escassa, reservada a uns poucos indivíduos.
E é assim que a família se torna o único espaço de confiança, no pensamento conservador esse é o seu lugar. Só os familiares são dignos de confiança, são o reservatório da lealdade, uma lealdade sanguínea. Na família você pode confiar, pois lá supostamente você pode se desarmar, ser você mesmo, não há violência, não há coação… não há nada daquilo que nos inspira desconfiança quando encontramos em pessoas de fora da família, ou em desconhecidos. E o que caberia aos outros, aos de fora da família? Aos outros caberia a salutar desconfiança, que justifica uma sociedade competitiva e egocêntrica.
Quando pela constante atenção que lhes prestamos permitimos que as piores ações e os piores seres humanos determinem o modo como nos sentimos e pensamos, o ódio cresce dentro de nós. Um ódio como o de Daniel Plainview, que alimenta a semente da misantropia e acentua os mais detestáveis aspectos dos outros. E assim nós passamos a ver as coisas com outros olhos, o mundo ganha tons sombrios, todas as conversas tornam-se cálculos e devem ser parte de uma estratégia onde o que se diz tem de ser pensado para provocar um efeito; toda a interação humana se converte num jogo entre pessoas diferentes que, no entanto, buscam o mesmo: instrumentalizar o outro para seus propósitos, influenciá-lo a agir conforme seus interesses e ter sobre ele alguma forma de poder.
Se você não estiver jogando ou tentando provocar no outro um efeito conforme aos seus interesses, se a sua intenção na conversa é gratuita e genuinamente interessada, aberta, quem garantirá que o outro por sua parte não está jogando e tentando te manipular? Como acreditar que as pessoas não são enganosas e manipuladoras (deceitful)? Quem garantirá que elas não nos têm enredados numa trama em suas cabeças, e fazem e dizem tudo para conseguir o que querem? Como determinar se não somos um peão, uma peça num complexo maquinário? É certo que algumas pessoas são idiotas demais para conseguir sustentar uma trama complexa, mas como acreditar na honestidade das pessoas em geral? Essa é a verdade que o conservador abraça com o desespero de quem se aferra a algo que pode salvar sua vida.
Nada de bom pode vir desse ethos que considera sinal de prudência e sabedoria ter sempre presente o pior do ser humano. Essa disposição não é uma espécie de esperteza ou astúcia, mas para quem pensa assim ter outra perspectiva só pode significar ingenuidade risível que pronto se prova amargamente prejudicial. Por tudo isso, é imprescindível recusar as nobres ideologias (conservadoras) que com uma mão tentam envenenar perspectivas coletivas semeando e instrumentalizando a desconfiança, limitando a confiança ao sagrado núcleo familiar, e com a outra alimentam o que há de mais egoísta e egocêntrico no ser humano, fazendo-nos esquecer da nossa programação padrão.
Quando a lógica da desconfiança triunfa, como um parasita a drenar nossas forças, é inevitável pensar em Nietzsche, naquilo que ele nos diz sobre os que lutam com monstros.
Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.
Nietzsche, Além do bem e do mal, § 146
Ver o que há de melhor no ser humano é um exercício, um exercício ético, que me parece o único modo de esterilizar o sentimento fascista que varre o mundo mais uma vez. Toda a busca por virtudes éticas nos leva à necessidade de moldar nossas ações, de repeti-las uma e outra vez até que se tornem hábitos e por fim deem lugar a uma segunda natureza, uma segunda pele. Ver o melhor dos seres humanos significa não deixar que as expressões dos piores aspectos da nossa natureza nos faça esquecer as suas melhores características. É a luta para lembrar a si mesmo, mas também para criar e manter uma atmosfera onde não se permita a nenhum outro humano esquecer quantos seres fantásticos existiram e ainda existem, de tal sorte que assim possamos inverter a lógica do abismo.
Ter sempre presente o melhor do humano não significa viver no mundo dos ursinhos carinhosos, nem ignorar o que nos outros nos inspira medo e desconfiança; não significa colocar seres humanos em pedestais, numa fandom, ou em qualquer contexto em que mesmo a merda que eles cagam pareça divina. A despeito de todas as adversidades, e do sofrimento que se abate sobre nós com mais frequência que a alegria, esperamos que quem tem presente o melhor do humano possa sentir como algo real e concreto a beleza que manifesta nosso espírito, a verdade que transborda de suas expressões, e possa aspirar não ao distanciamento que a desconfiança fomenta, mas à comunhão, a ser também parte disso que é melhor. E que esse desejo molde profundamente sua vida. Pois é só quando estão juntos, e não distantes, é só quando os seres humanos se sentem à vontade para ser quem são juntos a outros humanos que podemos imaginar e criar o melhor — e só assim nos fortaleceremos.
É quase com vergonha me vejo compelido a repetir, repetir e repetir o mantra sobre a amizade. Se desafortunadamente falta a alguém ocasião para constatar os efeitos da amizade, Get Back ilustra primorosa e deliciosamente o modo como a presença de um amigo pode afetar e ampliar nosso próprio espírito; claro, tenho em mente a relação entre Lennon e McCartney, a estimulante afinidade entre eles.
A convivência da família é a fonte de quase todas as coisas boas que creditamos ao sangue. O que não significa que o sangue não tenha importância, tem!, mas ele não é tão determinante como nas perspectivas mais radicalmente inatistas e/ou conservadoras. Acontece que a convivência também pode trazer coisas horríveis, porque nas famílias pode haver pessoas muito diferentes, que não conseguem resolver suas diferenças ou seus próprios problemas. Os conservadores fecham os olhos para as monstruosidades da família, porque de outro modo teriam que admitir que a chave para o tema confiança/desconfiança não é biológica, mas ético-política. No entanto, convém lembrar aos hipócritas algo que sabem todos os que verdadeiramente se importam com o tema: Mais de 70% da violência sexual contra crianças ocorre dentro de casa (Agência Brasil).