O livro de Chantal Mouffe, The democratic paradox, é incrivelmente bom. É incrível também quanta tinta é gasta ainda elocubrando e desenvolvendo perspectivas claramente apoiadas em posições universalistas e racionalistas — mesmo após o sem número de pensadores que, no século passado, apresentaram críticas incontornáveis, em todos os terrenos possíveis (da antropologia à lógica), à metafísica que ampara essas perspectivas. Como se enfrentar certos problemas fosse antes uma questão de vontade, e não uma necessidade imposta pela sua própria presença no campo argumentativo. Assim, a teoria política segue ignorando as demolidoras críticas à razão universalista que o século passado colecionou, como quem vira a face para não ver algo. É mais um testemunho de que a argumentação e a esfera pública se determinam não por fatores estritamente “racionais”, mas se orientam talvez fundamentalmente por aspectos estranhos a esse universo, como bem assinala Feyerabend. (Não é de se estranhar que a retórica e a dialética tenham se reduzido a caricatura que atesta o bom e velho Perelman, e outros, claro [caricatura bem representada na dialética transcendental de Kant]; é preciso fazê-la ressurgir em nome da honestidade intelectual e da franqueza no trato dos nossos problemas).
O livro foi escrito antes da virada do milênio e contém passagens que, embora já tenham sido sugeridas por certos movimentos políticos como o cenário político francês de então, antecipam um quadro que hoje é atualíssimo. O uso que autora faz de Wittgenstein é tremendamente apropriado, considerando não ser ela uma especialista e as dificuldades próprias à obra do filósofo. Acho que suas perspectivas comportam ainda mais radicalidade, mas essa é uma outra questão. Aqui, no entanto, preferi ilustrar seu pensamento com o que ele tem de explicativo. Algo, talvez, mais banal, se comparado ao bom uso que se faz de Wittgenstein e Derrida, por exemplo, mas ainda sim muito interessante. Leiam!
(…) A look at other countries where, because of different traditions, the sexual card cannot be played in the same way as in the Anglo-American world shows [ela havia falado antes do caso Clinton] that the crusade against corruption and shabby deals can play a similar role in replacing the missing political line of demarcation between adversaries. In other circumstances yet, the political frontier might be drawn around religious identities or around non-negotiable moral values, as in the case of abortion, but in all cases what this reveals is a democratic deficit created by the blurring of the left/right divide and the trivialization of the political discourse.
It is also in the context of the weakening of the democratic political public sphere where an agonistic confrontation could take place that the increasing dominance of the juridical level should be understood. Given the growing impossibility of envisaging the problems of society in a properly political way, there is a marked tendency to privilege the juridical field and to expect the law to provide the solutions to all types of conflict. The juridical sphere is becoming the terrain where social conflicts can find a form of expression, and the legal system is seen as responsible for organizing human coexistence and for regulating social relations.
(…) Another, even more worrying consequence of the democratic deficit linked to the obsession with centrist politics is the increasing role played by populist right-wing partics. Indeed, I submit that the rise of this type of party should be understood in the context of the ‘consensus at the centre’ form of politics which allows populist parties challenging the dominant consensus to appear as the only anti-Establishment forces representing the will of the people.The democratic paradox, p. 115-6 (grifos meus)