Amor não é match
O segundo filme de Celine Song, Materialists, é muito melhor que o primeiro. O primeiro não é ruim — na verdade, é muito bom — mas eu tenho diferenças significativas a respeito do modo como o filme apresenta certas coisas. O melhor desse segundo filme é a reflexão sobre a lógica do match, a lógica de aplicações como o Tinder. O filme aborda essa lógica sem sequer mencionar as aplicações, e esse é um truque genial.
A lógica do match é a lógica da parceria (e do business), mas o amor não é parceria. O amor pode até se tornar parceria, mas não nasce nessa condição. A parceria pode tornar-se amor (porque “amar se aprende amando”), mas ela não é originalmente amor. E é quase ofensivo dizer isso num mundo onde os encontros têm acontecido predominantemente por meio de aplicações (online). Não consigo encontrar outra explicação para a enxurrada de críticas que tenho visto dirigidas ao filme.
Não quero me demorar examinando cada aspecto, assim que vou apenas listar algumas questões que o filme aborda com muito cuidado e de maneira bastante orgânica — leia por sua própria conta e risco (spoilers):
- O cinismo de mostrar abertamente o amor como um “mercado”, as pessoas como produtos, e as consequências disso: a montagem do produto, o desejo de um produto específico, custom tailored.
- A pergunta pela capacidade de amar, não a banalização da ideia de que todo mundo ama. Essa é a questão filosófica que está no centro do filme, de modo quase despercebido.
- A ideia da importância do homem como fonte de valor e meio de valorização da mulher. A honestidade com que o filme fala isso, a despeito de se estamos de acordo ou não com essa representação das coisas.
- A discussão sobre ativos (assets) materiais e imateriais, a questão do materialismo em si. Eu não sou realista, quem dirá materialista, apesar do respeito por todos os materialistas de esquerda que amamos. A redução do amor (e do Encontro) a um cálculo de ativos que se repete no filme.
- A representação do amor como algo fácil, espontâneo, que não envolve dificuldade, porque não precisamos fazer nada. O amor implica ser capaz de olhar o mundo e identificar as pessoas dispostas a amar e a oferecer amor, pessoas inclinadas a uma abertura que é o aspecto ético mais importante do amor. Amor é como a vida, destino e não controle.
Tudo isso sem falar, naturalmente, na atuação e na direção.
O capitalismo é uma forma de vida, é o ambiente muito geral e heterogêneo no qual a verdade é substituída pela publicidade. Por isso a crítica ao materialismo, mesmo no cinema, é percebida como contra-propaganda. Propaganda do outro lado. — Por quê? Porque tudo é propaganda e já não há um lado de fora, tudo é visto por meio dessa lente (é o que eu chamo de cegueira normativa). Tudo é mercadoria, está a venda (simbolicamente ou não) e deve ser promovido por meio da publicidade — e não da verdade (até a ciência precisa dos divulgadores, seus próprios publicitários e influencers). Nós vendemos a nós mesmo, nossas relações, nossas vidas privadas, em troca de um pouco de capital (simbólico ou não) com o qual pensamos poder comprar nosso amor próprio. Ledo engano!
A crença na Verdade reflete a ingenuidade e o idealismo dos cientistas: o propósito de determinação e a vontade de controle traduzidas em empreendimento de engenheiros, mascarando o medo sob o manto do domínio técnico. Os paradigmas de força e poder da Tecnocracia são como um santo do pau oco, vazios por dentro, frágeis e quebradiços por baixo da bela pele tecnológica.
PS. Eu tenho pronto um texto sobre “o lado de fora”, sobre uma crítica à universalidade que emerge no seio da lógica, o que acontece é que embora seja indispensável, ele é pouco palatável. É imprescindível, no entanto, falar dessa cegueira, da cegueira causada pela universalidade, pela ideia de que não existe um lado de fora. O papel que a publicidade tem no mundo é outra grande dívida, especialmente considerando como ela substituído sub-repticiamente a função da verdade. E Feyerabend já falava disso.