Sou um anarquista ignorante e envergonhado. Ignorante porque não li absolutamente nada, não li Proudhon, Bakunin, li parcialmente Kropotkin. Sou anarquista em razão especialmente de Carlos Taibo, do seu pensamento e da sua ação a respeito do decrescimento econômico. De Carlos Taibo para David Graeber e outros perigosos anarquistas foi um pulo.
Sou um anarquista envergonhado porque, apesar dessas mentes brilhantes e generosas, é como se algo ainda me inibisse e me impedisse de me declarar anarquista. Se eu me declarasse social democrata, não sentiria vergonha. Se me declarasse liberal, não sentiria vergonha. Mas por que será que sinto vergonha de me declarar anarquista? Pela minha tendência a se importar com o que os outros pensam. Especialmente o que pensam os realistas, os materialistas, os racionalistas, os pragmáticos, os deterministas, todos os que esgrimem algum tipo de régua pela qual supostamente podem distinguir o possível do impossível. São os que usam essa régua, aqueles que determinam aquilo que é mera utopia (não é possível) e o que não é, os definem quem são os ingênuos por acreditar numa utopia, os utopistas.
É um desafio pelo qual vale a pena viver aquele de tornar-se insensível ao que dizem as pessoas que ainda acham que é utopia acreditar num mundo pós-capitalista e pós-liberal, e que ser realista, responsável e tudo de preferível significa acreditar que o capitalismo pode ser reformado, na ideia de sustentabilidade, em mundo verde, e outras quimeras vendidas pelo capitalismo cultural. É um desafio livrar-se da lobotomia capitalista, do efeito subjetivo de viver nessa forma de vida nefasta e orientada ao egoísmo, o desafio de ser capaz de formar uma subjetividade não-capitalista, de re-subjetivizar-se — o que pode significar isso?
E pensando nessa ideia me ocorreu uma fonte cristalina de dignidade e inteligência de onde posso extrair energia para me declarar anarquista com orgulho! Essa fonte é Ursula K. Le Guin. Sou um vendido, como somos todos os que vivem nas metrópoles das cidades ricas da Europa, me refestelo em todos os confortos e serviços disponíveis aos “desenvolvidos e civilizados”, mas apenas pensando e imaginando Anarres é que eu me sinto finalmente pertencente a algum lugar, livre talvez da minha solidão. Não alienado, mas pertencente e integrado. Há dois aspectos da composição de Os despossuídos que me parecem fascinantes e que ilustram a profundidade da reflexão que a literatura de Ursula Le Guin provoca. O primeiro é uma reflexão sobre o poder sofisticada, quer dizer, ela consegue imaginar e tornar real a situação de conflito político numa sociedade anti-burocrática, numa sociedade de pessoas iguais, auto-organizadas. Como se algum grau de burocracia e de poder burocrático fosse inevitável quando atingíssemos um certo grau de complexidade social. É nada menos que brilhante!
O segundo aspecto é o propriamente subjetivo e intersubjetivo, é a sua capacidade de imaginar como aconteceria a vida humana numa sociedade não-capitalista com tamanho detalhe a ponto de explicitar nuances das relações sociais, da sexualidade das pessoas, do romance e do desejo de exclusividade num mundo sem propriedade e sem posse. Tudo muda! e Ursula Le Guin nos faz ver esse outro mundo como coisa real, sua inteligência torna aquilo real. E é daí que vem a minha saudade, por assim dizer, o sentimento de que sou Anarres, de que aí estão meus irmãos e irmãs. Ursula torna concreta e quase palpável aquilo que nos parece inimaginável: saber como se comportam subjetividades não capitalistas, o que essas pessoas fazem, como elas agem, como reagem umas às outras? Pessoas reais, humanas, imperfeitas como todos somos, mas reais e livres. Ela responde aos desafios antes mencionados com a sua literatura, e saímos dela em um novo lugar (topós), tendo a nítida imagem de um mundo diferente daquele no qual vivemos, sonhamos, e temos relações sociais ditas reais. Le Guin me dá vontade de bater de porta em porta, perguntando, “Você tem um minuto para ouvir a palavra anarquista?”