Lições que aprendemos ao cozinhar

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A culinária pode nos ensinar muito sobre a diferença entre o espírito e a máquina/computador. Cozinhar não é meramente seguir regras, apesar do papel que as receitas tem no preparo da comida. Claro que há um aspecto normativo no cozinhar, mas isso não é tudo.

Robôs não podem complexificar nem simplificar coisas, portanto, só podem seguir regras

Já inventaram robôs que cozinham, mas a atividade de cozinhar não é redutível a nenhum sistema determinístico. Apesar do que tem de normativo e regrado, cozinhar consiste em construir uma sensibilidade em relação a alimentos e temperos. O modo de exercer essa habilidade/competência espelha a nossa própria singularidade e leva tempo até que esse reflexo possa se tornar notável. (Toda a atividade humana realizada com destreza e criatividade é artística, pois toda arte bebe deliberadamente da indeterminação e do caos, como a estrela bailarina, de Nietzsche — e isso pode incluir também a criação em matemática e lógica).

Somente quando estamos aprendendo a cozinhar nós repetimos a receita, como quem meramente reproduz e segue regras. Depois de um tempo o modo de preparo do prato passa a ser nosso, e essa apropriação é o começo da construção de uma personalidade, de um estilo, que pode ser tão singular como uma impressão digital. Aprender a cozinhar é um dos exemplos mais ilustrativos que se pode dar de criação, isto é, dessa apropriação que caracteriza o uso da inteligência.

(Ainda que os elementos da composição culinária sejam finitos, a complexidade das possibilidades de arranjos são indeterminadas, de sorte que não há limite de composição, há uma abertura e uma impossibilidade de fechamento/totalidade)

E quando nos damos conta da importância do criar (não-repetir) na cozinha percebemos que cozinhar é uma atividade que depende fundamentalmente do espírito, isto é, daquilo que em nós não é meramente maquinal (determinado). E que a parte espiritual é o essencial ao preparo da comida. E é então que as coisas começam a ficar interessante, porque percebemos também o quanto há de feitiço e feitiçaria nesse preparo. Quando se cozinha para pessoas queridas é fácil sentir isso, sentir que o desejo de agradar e dar prazer integra a composição do prato como uma energia que se pode canalizar e que algumas pessoas sabem como fazer naturalmente.

Esse é o sentido do dito “fazer comida com amor”, cozinhar é uma forma de amor e de amar, há uma relação estreita entre cozinhar e amar (o amor entendido como energia e força espiritual que se manifesta na carne). Pense a partir da diferença: imagine que você precisa cozinhar para uma pessoa que você quer conquistar, depois imagine ter que cozinhar para um bando de bolsonaristas raiz (esse tipo de gente). Não há como fazer o mesmo nos dois casos!

Cozinhar é aprender lições não explicitadas nas instruções de preparação de um prato, além de ser mais uma ocasião em que podemos constatar que o mundo é muito maior e mais complexo do que as partes às quais pensamos que ele pode ser reduzido.

PS. O primeiro texto que escrevi sobre a culinária trata do pós-nacionalismo, nesse contexto também podemos ver outras lições que o preparo de alimentos pode nos trazer, ainda que esta atividade pareça secundária na cultura humana.

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